No seu livro "Amor líquido" é um sucesso comercial no Brasil. Na sua opinião, por que as pessoas têm se interessado tanto pelo assunto?
Por que a idéia de durabilidade das relações amorosas nos assusta tanto?
ZYGMUNT BAUMAN: As relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais penosos com que precisamos nos confrontar e solucionar. Nestes tempos líquidos, precisamos da ajuda de um companheiro leal, "até que a morte nos separe", mais do que em qualquer outra época. Mas qualquer coisa "até a morte" nos desanima e assusta: não se pode permitir que coisas ou pessoas sejam impedimentos ou nos obriguem a diminuir o ritmo de vida. Compromissos de tempo indeterminado ameaçam frustrar e atrapalhar as mudanças que um futuro desconhecido e imprevisível pode exigir. Mas, sem esse compromisso e a disposição para o auto-sacrifício em prol do parceiro, não se pode pensar no amor verdadeiro.
De facto, é uma contradição sem solução. A esperança ainda que falsa é que a quantidade poderia compensar a qualidade: se cada relacionamento é frágil, então vamos ter tantos relacionamentos quanto forem possíveis.
O senhor está casado com a mesma mulher há 56 anos (a também socióloga Janina). Há segredo para uma união duradoura em tempos de "amor líquido", em que os parceiros são descartados de acordo com a sua funcionalidade?
BAUMAN: Quanto mais fácil se torna terminar relacionamentos, menos motivação existe para se negociar ou buscar vencer as dificuldades que qualquer parceria sofre, ocasionalmente. Afinal, quando os parceiros se encontram, cada um traz a sua biografia, que precisa ser conciliada, e não se pode pensar em conciliação sem fazer concessões e auto-sacrifício. Eu e Janina, provavelmente, consideramos isso mais aceitável do que a perspectiva de ficarmos separados um do outro. No fim das contas é uma questão de escolha, do valor que se dá a estar junto com o parceiro e da força do amor, que torna o auto-sacrifício em prol do amado algo natural, doce e prazeroso, em vez de amargo e desanimador.
A sociedade fragmentada que o senhor apresenta em "Vidas desperdiçadas" não estimula a individualização e o sentimento de medo ao estranho que foram apresentados em "Amor líquido"?
BAUMAN: Claro. Nos comportamos exactamente como o tipo de sociedade apresentada nos "reality shows", como por exemplo, o "Big Brother". A questão da "realidade", como insinuam os programas desse tipo, é que não é preciso fazer algo para "merecer" a exclusão. O que o "reality show" apresenta é o destino e a exclusão é o destino inevitável. A questão não é "se", mas "quem" e "quando". As pessoas não são excluídas porque são más, mas porque outros demonstram ser mais espertos na arte de passar por cima dos outros. Todos são avisados de que não têm capacidade de permanecer porque existe uma cota de exclusão que precisa ser preenchida. É exactamente essa familiaridade que desperta o interesse em massa por esse tipo de programa. Muitos de nós adoptamos e tentamos seguir a mensagem contida no lema do programa "Survivor": "não confie em ninguém!" Um slogan como esse não prediz muito bem o futuro das amizades e parcerias humanas.
Em "Vidas desperdiçadas" o senhor menciona a questão criada por "imigrantes" em busca de um Estado que os proteja e lhes dê sobrevivência. De que modo os recentes atentados terroristas nos EUA e Europa são uma conseqüência dessa "marginalização" de seres humanos?
BAUMAN: A globalização negativa cumpriu sua tarefa. As fronteiras que já foram abertas para a livre circulação de capital, mercadorias e informações não podem ser fechadas para os humanos. Podemos prever que quando e se os atentados terroristas desaparecerem, isso irá acontecer apesar da violência brutal das tropas. O terrorismo só vai diminuir e desaparecer se as raízes sociopolíticas forem eliminadas. E isso vai exigir muito mais tempo e esforço do que uma série de operações militares punitivas. A guerra real e capaz de se vencer contra o terrorismo não é conduzida quando as cidades e vilarejos arruinados do Iraque ou do Afeganistão são devastados, mas quando as dívidas dos países pobres são canceladas, os mercados ricos são abertos à produção dos países pobres e quando as 115 milhões de crianças actualmente sem acesso a nenhuma escola são incluídas em programas de educação.
O que o senhor acha da afirmação de alguns acadêmicos que a globalização acabou e que o momento que vivemos agora é de vácuo pós-globalização?
BAUMAN: Não sei o que esses "acadêmicos" têm em mente. Até agora, a nossa globalização é totalmente negativa. Todas as sociedades já estão abertas. Não há mais abrigos seguros para se esconder. A "globalização negativa" cumpriu seu papel, mas sua contrapartida "positiva" nem começou a actuar. Esta é a tarefa mais importante em que o nosso século terá que se empenhar. Espero que um dia seja cumprida. É questão de vida ou morte da Humanidade!
O que será preciso acontecer para que nossa sociedade se dê conta da armadilha que caiu em busca da suposta "modernidade"?
BAUMAN: A civilização moderna não tem tempo nem vontade de reflectir sobre a escuridão no fim do túnel. Ela está ocupada resolvendo sucessivos problemas, e principalmente os trazidos pela última ou penúltima tentativa de resolvê-los. O modo com que lidamos com desastres segue a regra de trancar a porta do estábulo quando o cavalo já fugiu e provavelmente já correu para bem longe para ser pego. E o espírito inquieto da modernização garante que haja um número crescente de portas de estábulos que precisam ser trancadas. Ocasiões chocantes como o 11 de Setembro, o tsunami na Ásia, (o furacão) Katrina, deveriam ter servido para nos acordar e fazer agir com sobriedade. Chamar o que aconteceu em Nova Orleans e redondezas de "colapso da lei e ordem" é simplista. Lei e ordem desapareceram como se nunca tivessem existido.
O senhor aponta uma "crise aguda da indústria de remoção de refugo humano". É possível criar mecanismos de inclusão dos seres humanos "excessivos" e "redundantes"?
A modernização implica, necessariamente, uma "lixeira humana"?
BAUMAN: Esse excesso de população precisa ser ajudado a retornar ao convívio social assim que possível. Eles são o "exército reserva da mão-de-obra" e lhes deve ser permitido que voltem à vida activa na primeira oportunidade. Os "redundantes" são obrigados a conviver com o resto da sociedade, o que é legitimado pela capacidade de trabalho e consumo. Em vez de permanecer, como era visto anteriormente, como um problema de uma parte separada da população, a designação de "lixo" torna-se a perspectiva potencial de todos. Há partes do mundo que se confrontaram com o antes desconhecido fenômeno de "população sobrando". Os países subdesenvolvidos não se disporiam, como no passado, a receber as sobras de outros povos e nem podem ser forçados a aceitar isso.
Países como Brasil, Índia e China são constantemente apontados como estratégicos para o século XXI. Ao mesmo tempo, são três países com grande número de "lixo humano", com alto índice de desemprego. Isso não é uma contradição?
BAUMAN: Certamente. Isso fica ainda pior quando os gigantes do século XXI, China, Índia, Brasil, entram no "processo de modernização". O número de "pessoas desnecessárias" crescerá. E aí há o grande problema que mais cedo ou mais tarde teremos que enfrentar: capacitar ou não China, Índia e Brasil a imitar o modelo de "bem-estar" adotado nos Estados Unidos em uma época em que "modernização" ainda era um privilégio de poucos? Para dar vazão, seriam necessários três planetas, mas nós só temos um para dividir.
Um dos mais importantes compositores brasileiros, Chico Buarque de Holanda, afirmou que "uma nação grande e forte é perigosa, mas que uma nação grande, forte e ignorante é ainda mais perigosa". Ter uma nação grande, forte e ignorante no comando do mundo como parecem ser os Estados Unidos da Era Bush não pode acirrar ainda mais o "refugo" dos seres humanos?
BAUMAN: Lamento não conhecer Chico Buarque: ele toca no cerne da questão. Até onde vai a situação de nosso planeta com um único superpoder, confundido e subjugado pela ilusão de sua repentina ilimitada liberdade? A elevação súbita dos Estados Unidos à posição de superpotência absoluta e uma incontestada hegemonia mundial pegou líderes políticos americanos e formadores de opinião desprevenidos. É muito cedo para declarar a natureza deste novo império e generalizar seu impacto no planeta. Seu comportamento é, possivelmente, o fator mais importante da incerteza definida como "Nova Desordem Mundial". Um império estabelecido pela guerra tem que se manter por guerras. Acabamos de ver isso no Iraque, apesar de todos saberem que era óbvio que bombardear e invadir o país não aniquilaria o terrorismo.
No Brasil, temos uma expressão muito popular, "jeitinho brasileiro", que representa a capacidade do povo de superar adversidades, sejam elas pequenos problemas do cotidiano ou não. O senhor acredita que há nações com seres "redundantes" que saibam sobreviver melhor do que outros?
BAUMAN: O que vocês chamam de "jeitinho brasileiro" é a maneira que a modernização nos obrigou a reagir. Um dos resultados cruciais da modernização é a dependência dos processos da vida humana pelos "jeitinhos". Isso implica o outro lado da mesma moeda: a vulnerabilidade crescente dos legítimos modos instruídos de viver.
Aos 80 anos, sua produção intelectual ainda é grande. O que o motiva a continuar escrevendo?
BAUMAN: Pierre Bourdieu ressaltou que o número de personalidades do cenário político que podem compreender e articular expectativas e demandas está encolhendo. Precisamos aumentá-lo, e isso só pode ser feito apresentando problemas e necessidades. O próximo século pode ser o da catástrofe final ou um período no qual um novo acordo entre os intelectuais e as pessoas que representam a Humanidade seja negociado e trazido à tona. Vamos esperar que a escolha entre estes dois futuros ainda seja nossa.
Todas suas obras apresentam um cenário bastante pessimista do mundo. Temos razão para acreditar em dias melhores?
BAUMAN: Rejeito enfaticamente essa afirmação. Optimistas são pessoas que insistem que o mundo que temos é o melhor possível; os pessimistas são os que suspeitam que os optimistas podem ter razão. Portanto eu não sou nem optimista nem pessimista, porque acredito fortemente que outro mundo, alternativo e quem sabe melhor, seja possível. Acredito que os seres humanos sejam capazes de tornar real essa possibilidade.
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