"A finalidade da educação...é contestar o impacto das experiências do dia-a-dia, enfrentá-las e por fim desafiar as pressões que surgem do ambiente social.Mas será que a educação e os educadores estão à altura da tarefa? Serão eles capazes de resistir à pressão? Conseguirão evitar ser arregimentados pelas mesmas pressões que deveriam confrontar?"

Zygmunt Bauman, 2007


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Medo Líquido.Entrevista com Zygmunt Bauman. Jornal "O Estado de São Paulo", 27-01-2008, por Flávia Tavares.

A crise financeira internacional é uma ameaça? Há razões reais para termos medo dela?




O aspecto mais assustador dos medos é que não temos, nem podemos ter, nenhuma certeza se eles são genuínos ou imaginários. Isso leva as pessoas a gastar mais em coisas de que não precisam e as faz apoiar políticos que não se preocupam com seu bem-estar. Não sou economista nem profeta, e seria desonesto de minha parte falar sobre os aspectos técnicos da crise financeira. Aliás, mesmo as pessoas com credenciais para isso estão fazendo previsões falsas, dando conselhos equivocados e sendo surpreendidas. Vivemos agora - como já vivíamos antes desse colapso nas bolsas de valores, do 11 de Setembro ou do Katrina - em um estado de medo permanente e incurável. Medos emanam de absolutamente qualquer coisa: falta de estabilidade no trabalho, constantes mudanças nas regras do jogo da vida, fragilidade nas parcerias, falta de reconhecimento social, ameaças de epidemias, comidas cancerígenas, possibilidade de ser excluído do mercado, ameaças à segurança pessoal nas ruas. Os medos são muitos e diferentes entre si, mas eles alimentam um ao outro, formando um estado de espírito que só pode ser descrito como “insegurança geral”. Nós nos sentimos ameaçados, mas não sabemos exatamente de onde vêm as ansiedades... Os medos estão flutuando no ar. Os especialistas nos dão diagnósticos conflitantes - o que ontem parecia impossível é anunciado como iminente e inescapável hoje. Por isso, estamos sempre “psicologicamente prontos” para um desastre e imaginamos que o mundo seja um contêiner de perigos. E, como disse o grande sociólogo W. I. Thomas há quase um século, se as pessoas acreditam que algo é real, elas vão agir de uma forma que vai tornar aquilo real.



Como temos reagido aos medos?



Nas últimas décadas, o apetite consumista aumentou muito e chegou a um nível insustentável no longo prazo. Precisaríamos dos recursos de três planetas Terra para sustentar esses níveis de consumo no mundo inteiro. Segundo David Leonhadt, em um artigo no New York Times, “nos últimos 16 anos, os consumidores americanos aumentaram o total de seus gastos em todos os trimestres - um período duas vezes maior do que a seqüência de aumentos anterior”. Essa farra de consumo foi majoritariamente feita a crédito, com pessoas contraindo empréstimos e se afundando em dívidas. Quem pode garantir que a crise atual não seja o capítulo inicial do longo e amargo despertar que costuma se seguir a períodos de alto consumo e auto-enganação? Por muito tempo suspeitamos que um momento de choque chegaria, mas abafamos essa desconfiança e tentamos diminuir as preocupações com os prazeres do consumo diário.



As reações ao medo no mercado financeiro se dão em cadeia. A queda na Ásia influencia o Brasil. O medo coletivo provoca efeitos ainda mais imprevisíveis e perniciosos?



Querendo ou não, nossas condições e destinos estão interligados, porque dependemos uns dos outros. Isto não quer dizer, porém, que tenhamos tirado alguma conclusão dessa interdependência ou tenhamos dado a devida atenção às conseqüências disso. Um obstáculo para o reconhecimento das responsabilidades mútuas é a falta de conhecimento das complexas interconexões entre nossas vidas. A maioria dos efeitos das ações e inações tende a aparecer como conseqüências imprevistas e efeitos colaterais surpresa. Precisamos de uma “epidemia planetária”, como a queda da Bolsa de Hong Kong contaminando a de São Paulo, para chamar a atenção do mundo para essa dependência mútua. Os resultados dessa interdependência sempre nos surpreendem e, por isso, são tão destrutivos. Podemos limitar esse estrago - apesar de não podermos eliminá-lo completamente - se dermos mais importância, na prática, ao bem-estar das pessoas que sofrem com o resultado de nossas ambições.



O movimento das bolsas de valores responde quase sempre a temores circunstanciais. Qual a lógica do capitalismo hoje?



O capitalismo tem uma lógica em seu funcionamento, mas essa lógica, como muitas outras operando nos destinos comuns, foi desregulada e “privatizada”. Assim, os efeitos coletivos e planetários das ações locais nos deixam despreparados. Pensamos em juntar forças somente depois de um desastre e aí já é tarde para prevenir uma catástrofe. Além disso, depois do choque e do momento mais sinistro da crise, retomamos velhos maus hábitos, tentando explorar o fato para aumentar os ganhos. Um exemplo recente e assustador é a tentativa de explorar as áreas virgens do Ártico para extrair petróleo, à custa da deterioração do clima. Novamente, a “lógica global” se prova impotente quando confrontada com a folia da “lógica privada”. Até outro desastre acontecer. Um desastre que não terá sido imprevisto - mas cujas conseqüências foram vistas com negligência.



A relação mais estreita entre os países não deveria nos ajudar a evitar potenciais perigos?



Sim, mas até aqui a globalização só mostrou sua natureza negativa. Essa natureza tende a ignorar as soberanias, as leis e os interesses locais da população. E essa natureza negativa quer abolir todos os impedimentos contra suas regras arbitrárias que regem as finanças, o comércio, as máfias, o tráfico de drogas e o terrorismo. As instituições de controle político e legal ainda se mantêm tão locais quanto antes; os braços são muito curtos para alcançar a fonte dos problemas. Poder e política, uma dupla que até pouco tempo estava casada dentro das nações-estado, estão desquitados e, agora, querem se divorciar. Temos cada vez mais políticos sem poder e poderes sem nenhum controle político.



O senhor diz, em seu livro Medo Líquido, que a globalização eliminou qualquer possibilidade de segurança, já que a abertura dos mercados e dos países acabou com as proteções. Como se deu esse processo?



Somente as forças “antiprotecionistas” são realmente globais hoje, considerando todo e qualquer ato de autodefesa como uma restrição imperdoável à liberdade. Espaço e distância não mais representam uma proteção e ninguém se sente seguro no próprio país. Somos forçados a procurar, em vão, soluções locais para problemas globais. Estamos a anos-luz de criar poderes eficientes que restrinjam os perigos globais. A globalização cumpriu sua missão, e todas as sociedades estão agora completa e realmente abertas, material e intelectualmente. Essa abertura tem hoje um novo brilho, com o qual Karl Popper, criador do termo “globalização”, nem sonhou. A globalização se tornou um processo seletivo de capital, vigilância e informação, coerção e armas, crimes e terrorismo, que não respeita os limites dos Estados. Se a idéia de uma sociedade aberta originalmente representava a autodeterminação de uma sociedade livre, orgulhosa de sua abertura, agora ela traz a assustadora experiência de uma população heterogênea e vulnerável, apavorada com sua incapacidade de se defender e obcecada com a segurança de suas fronteiras e dos indivíduos dentro delas - embora seja exatamente essa segurança que foge a seu controle. Em um mundo globalizado, segurança não pode ser garantida em um país ou em um conjunto de países. Não independentemente das vontades do restante do mundo.



Que outras conseqüências a natureza da globalização tem?



A justiça, condição obrigatória para a paz, também não tem garantias. A abertura pervertida das sociedades é a causa primária da injustiça e, conseqüentemente, dos conflitos e da violência. Foi a ação dos EUA, com seus satélites, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, que propiciou condições para o subdesenvolvimento e seus perigosos subprodutos, como nacionalismo, fanatismo religioso, fascismo e, claro, terrorismo. O mercado sem fronteiras é a receita para a injustiça e para a desordem mundial. A falta de leis globais e a violência armada se auto-alimentam. Ao mesmo tempo, como demonstrou o economista francês Jacques Attali, em seu livro La Voie Humaine, metade do comércio mundial e mais da metade do investimento global beneficiam somente 22 países que abrigam 14% da população do mundo, enquanto os 49 países mais pobres, habitados por 11% da população mundial, recebem 0,5% do dinheiro desses investimentos e do comércio. A Tanzânia ganha US$ 2,2 bilhões por ano para seus 25 milhões de habitantes. O Goldman Sachs Bank ganha US$ 2,6 bilhões, divididos entre 161 acionistas. Na Europa e nos EUA gastam-se US$ 17 bilhões em rações para animais, enquanto, segundo especialistas, US$ 19 bilhões resolveriam a fome do mundo.



Países com maior desigualdade social, como o Brasil e outros emergentes, tendem a sentir mais medo?



A pobreza permanece como uma grande fonte de medo. A novidade é o medo da exclusão e da humilhação. Conforme um país se torna mais influente, a competição individual não é mais pela sobrevivência física ou pela satisfação de instintos básicos. Nem é mais pelo direito de decidir que tipo de vida esse indivíduo gostaria de levar. Aliás, presume-se que qualquer coisa que aconteça a esse indivíduo seja conseqüência do exercício desse direito. Divididos em indivíduos, somos encorajados a buscar um “reconhecimento social” pelas escolhas individuais. “Reconhecimento social” significa aceitar que o indivíduo que escolheu aquele tipo de vida seja decente e, assim, mereça respeito de outras pessoas decentes.



O que acontece quando esse reconhecimento social não vem?



Ocorre a humilhação. A pessoa se sente humilhada quando lhe é mostrado, com ações ou palavras, que ela não pode ser o que pensa que é. Não é à toa que o tão popular Big Brother seja chamado de “reality show”. Esse nome sugere que a vida fora das telas, a vida real, é como a saga dos competidores do programa. Nos dois ambientes, ninguém tem garantia de permanecer no jogo, de sobreviver. Não há dúvidas de que alguém será eliminado. A questão é quem. Não se cogita acabar com as eliminações (o que favoreceria a união de forças e a solidariedade), mas sim escapar da ameaça de eliminação e jogá-la para cima de outros competidores. Mas sentir-se excluído gera ressentimentos. Em uma sociedade em que a individualidade prevalece, essa é uma grande causa de conflitos. A ameaça de exclusão substitui a exploração e a discriminação como a forma mais comumente usada para justificar a violência individual contra a sociedade.



Esse é um fenômeno novo?



Pelo contrário, é tão velho quanto a humanidade. No entanto, as explicações mais comuns para o sofrimento estão se distanciando dos fatores coletivos e se tornando referências pessoais. Assim, a solução para esse sofrimento não seria uma reforma social, mas a vingança pessoal. Quando os indivíduos são forçados a desenvolver soluções individuais para problemas sociais, eles procuram os responsáveis por seu sofrimento e esses agentes são localizados, julgados e condenados de uma só vez.



Por que nos tornamos mais temerosos do que éramos antes?



O Estado havia encontrado a forma de convencer os cidadãos a ser obedientes: oferecia em troca a promessa de proteção contra as ameaças a sua existência. Não mais tendo condições de cumprir tal promessa, esse Estado acaba por mudar a ênfase da proteção contra os perigos à segurança social para os perigos à segurança pessoal - e, assim, “subsidiar” a batalha contra o medo. Os medos estão agora difusos, espalhados e indefinidos. Isto é o que os torna tão assustadores e de difícil eliminação. Essa característica “líquida” do medo o transforma em capital político e comercial - que os políticos e as empresas estão sempre tentados a reverter em algo lucrativo. O apelo popular de se fazer algo contra as causas desconhecidas das ansiedades e de combater as ameaças invisíveis pode ser distorcido e redirecionado para objetos que não são necessariamente responsáveis pela nossa insegurança, mas são convenientes do ponto de vista político e mercadológico. Essa mudança de foco não cura a ansiedade e, portanto, não diminuirá o suprimento de “capital do medo” - mas servirá para que sejam vendidos produtos relacionados à segurança e, por um breve período, reduzirá a tensão. Quando os medos da população se tornam uma tentação comercial, há poucas chances de eliminá-los pela raiz. Pelo contrário, os governos e os mercados têm interesse em manter os medos intactos e, se possível, aumentá-los.



Estamos mais vulneráveis aos perigos nas grandes cidades?



Áreas urbanas são locais onde inseguranças sociais são confrontadas de forma tangível. Num processo de distorção de seu papel histórico, nossas cidades não são mais abrigos contra os perigos, mas se tornaram o perigo em si. Amigos, inimigos e os misteriosos estranhos que não são nem um nem outro misturam-se e se esbarram nas ruas. A guerra contra a insegurança, os perigos e os riscos é travada dentro das cidades e, nesses campos de batalha urbanos, são feitas trincheiras e linhas de frente, pesadamente armadas.



Quais as conseqüências disso?



Quanto mais nos desligamos dos arredores, mais precisamos de vigilância. As casas em regiões urbanas no mundo inteiro existem agora para proteger seus moradores, não mais para integrar as pessoas em suas comunidades. A polarização não pára de crescer e, com ela, a interrupção nas comunicações entre as duas categorias de moradores das cidades. Enquanto os da parte mais rica estão conectados com o restante do mundo, os que habitam o lado mais pobre, normalmente desenhado com linhas étnicas, confiam apenas em sua identidade para defender seus interesses. Somente esse segundo grupo está circunscrito territorialmente. O primeiro grupo pode estar “no lugar”, como o segundo, mas nunca será “do lugar”. O resultado desastroso dessa relação nas áreas urbanas mais privilegiadas, habitadas pela elite global, são as áreas abandonadas, os guetos. Se há pretensões de manter essa distância intransponível para evitar uma contaminação entre as áreas, a política de tolerância zero e a expulsão dos sem-teto são um instrumento muito útil.



Qual é a diferença?



A classe mais alta não pertence mais ao lugar que habita, já que suas preocupações estão focadas em outro ponto. Antigamente, a população de uma cidade era a base de consumo para empresários e comerciantes e, assim, também era de sua responsabilidade. Agora, a elite está desligada de seus vizinhos e dos problemas da cidade, tão insignificantes quando comparados ao mundo virtual em que essa elite vive. A classe mais baixa tem o comportamento oposto. Os habitantes de áreas pobres estão condenados a ser daquela área e, portanto, suas preocupações são locais. A separação da nova elite global de seus antigos compromissos com a população local e o vácuo crescente entre os que se foram e os que foram deixados para trás são a semente da passagem social, cultural e política do estágio “sólido” para o “líquido” da modernidade.

Entrevista de Bauman ao caderno "Folhamais!", Jornal Folha de São Paulo,2003.

São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003




ZYGMUNT BAUMAN DEFENDE A LITERATURA


COMO FORMA DE COMPREENSÃO DA CONDIÇÃO


HUMANA E ATACA OS "MUROS DA ACADEMIA" E


A ALIENAÇÃO DOS INTELECTUAIS








Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke


especial para a Folha

Um renomado periódico espanhol referiu-se

recentemente a Zygmunt Bauman (1927) como um dos

poucos sociólogos contemporâneos "nos quais ainda

se encontram idéias". Opinião semelhante é

frequentemente exposta por críticos de várias partes

do mundo quando refletem sobre o pensamento desse

intelectual polonês radicado na Inglaterra desde 1971 e

empenhado, há meio século, em "traduzir o mundo em

textos", como diz um deles. Indiferente às fronteiras

disciplinares, Bauman é um dos líderes da chamada

"sociologia humanística".

De um lado, não se encontram em suas obras

abstrações ou análises e levantamentos estatísticos, e,

de outro, são ali aproveitadas quaisquer idéias e

abordagens que possam ajudá-lo na tarefa de

compreender a complexidade e diversidade da vida

humana. Essa é uma das razões pelas quais Bauman

tem muito a dizer para uma gama de leitores muito

maior do que normalmente se espera de um trabalho

de sociologia mais convencional, o que condiz com

suas próprias ambições de atingir um público composto

de pessoas comuns "se esforçando por ser humanas"

num mundo mais e mais desumano. Como ele gosta

de insistir, seu objetivo é mostrar a seus leitores que o

mundo pode ser diferente e melhor do que é.

Autor prolífico e de renome internacional, pode-se dizer

que sua fama e prolixidade aumentaram

significativamente após sua aposentadoria, em 1990:

16 de seus 25 livros foram publicados após essa data e

cinco obras dedicadas ao estudo de seu pensamento

foram escritas nos últimos anos.

Descrito certa vez como "profeta da pós-modernidade"

(com o que não concorda), por suas reflexões sobre as

condições do mundo da "modernidade líquida", os

temas abordados por Bauman tendem a ser amplos,

variados e especialmente focalizados na vida cotidiana

dos homens e mulheres comuns. Holocausto,

globalização, sociedade de consumo, amor,

comunidade, individualidade são algumas das

questões de que trata, sempre salientando a dimensão

ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz

respeito à condição humana. Preocupado com a sina

dos oprimidos, Bauman é uma das vozes a

permanentemente questionar a ação dos governos

neoliberais que dão amplo apoio às forças do mercado

ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade

de promover a justiça social.

Nascido na Posnânia em 1925, Bauman escapou dos

horrores do Holocausto que aguardavam os judeus

poloneses na Segunda Guerra, ao fugir com sua

família para a Rússia em 1939. De lá voltou após a

guerra, quando se filiou ao Partido Comunista, estudou

na Universidade de Varsóvia e conheceu Janina, com

quem está casado há 55 anos e com quem teve três

filhas: Anna (matemática), Lydia (pintora) e Irena

(arquiteta).

Confiantes e animados pelo sonho de criar uma

sociedade mais justa e igualitária, Zygmunt e Janina ali

estiveram a construir suas carreiras (ele como

professor da Universidade de Varsóvia e, ela, como

editora de enredos cinematográficos) e criar sua

família, até que uma nova onda de anti-semitismo e

repressão esmagou os seus sonhos e os forçou ao

exílio. Após três anos em Israel, o convite a Bauman

para ser chefe do departamento de sociologia da

Universidade de Leeds os trouxe à Inglaterra, onde

permanecem até hoje.

Bauman recebeu o Mais! em Leeds, na confortável

casa onde mora desde que ali chegou, há mais de 30

anos. "Naquela época achei a cidade horrível, imunda",

me disse Janina, comentando a mudança que ocorreu

nos últimos tempos e que transformou Leeds, de um

sujo centro industrial, em uma cidade bonita,

verdejante e cheia de vida.



O senhor já foi descrito como um "profeta da pós-

modernidade" e os termos "pós-moderno" e "pós-

modernidade" aparecem em títulos de quatro de seus

livros. Estaria sugerindo que ocorreu uma mudança

cultural e social significativa na última geração

suficientemente grande para que falemos de um novo

período da história?

Uma das razões pelas quais passei a falar em

"modernidade líquida" em vez de "pós-modernidade"

(meus trabalhos mais recentes evitam esse termo) é

que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão

semântica que não distingue sociologia pós-moderna

de sociologia da pós-modernidade, entre "pós-

modernismo" e "pós-modernidade". No meu

vocabulário, "pós-modernidade" significa uma

sociedade (ou, se se prefere, um tipo de condição

humana), enquanto que "pós-modernismo" se refere a

uma visão de mundo que pode surgir, mas não

necessariamente, da condição pós-moderna.

Procurei sempre enfatizar que, do mesmo modo que

 
ser um ornitólogo não significa ser um pássaro, ser um

sociólogo da pós-modernidade não significa ser um

pós-modernista, o que definitivamente não sou. Ser um

pós-modernista significa ter uma ideologia, uma

percepção do mundo, uma determinada hierarquia de

valores que, entre outras coisas, descarta a idéia de

um tipo de regulamentação normativa da comunidade

humana e assume que todos os tipos de vida humana

se equivalem, que todas as sociedades são igualmente

boas ou más; enfim, uma ideologia que se recusa a

fazer julgamentos e a debater seriamente questões

relativas a modos de vida viciosos e virtuosos, pois, no

limite, acredita que não há nada a ser debatido. Isso é

pós-modernismo.

Mas sempre estive interessado na sociologia da pós-

modernidade, meu tema tem sempre sido compreender

esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de

sociedade que vem surgindo ao nosso redor; e a vejo

como uma condição que ainda se mantém

eminentemente moderna nas suas ambições e no seu

"modus operandi" (ou seja, no seu esforço de

modernização compulsiva, obsessiva), mas que se

acha desprovida das antigas ilusões de que o fim da

jornada estava logo adiante.

É nesse sentido que pós-modernidade é, para mim,

modernidade sem ilusões. Diferentemente da

sociedade moderna anterior, a que eu chamo de

modernidade sólida, que também estava sempre a

desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz

com uma perspectiva de longa duração, com a

intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo

está agora sempre a ser permanentemente

desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma

permanência.
Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da

"liquidez" para caracterizar o estado da sociedade

moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por

uma incapacidade de manter a forma. Nossas

instituições, quadros de referência, estilos de vida,

crenças e convicções mudam antes que tenham tempo

de se solidificar em costumes, hábitos e verdades

"auto-evidentes". É verdade que a vida moderna foi

desde o início "desenraizadora" e "derretia os sólidos e

profanava os sagrados", como os jovens Marx e

Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se

fazia para ser novamente "reenraizado", agora as

coisas todas -empregos, relacionamentos, know-hows

etc.- tendem a permanecer em fluxo, voláteis,

desreguladas, flexíveis.

Como um exemplo dessa perspectiva, li, num dia

desses, que um famoso arquiteto de Los Angeles

estava se propondo a construir casas que

permanecessem lindas "para sempre". Ao ser

questionado sobre o que queria dizer com isso, ele

teria respondido: até daqui a 20 anos! Isso é hoje "para

sempre", grande duração. O que me interessa é,

portanto, tentar compreender quais as consequências

dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu

cotidiano. Virtualmente todos os aspectos da vida

humana são afetados quando se vive a cada momento

sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais

sentido.

Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo

o mundo a terem um projeto de vida, a decidir o que

queriam ser e, a partir daí, implementar esse programa

consistentemente, passo a passo, hora a hora. Ora, ter

uma identidade fixa, como Sartre aconselhava, é hoje,

nesse mundo fluido, uma decisão de certo modo

suicida. Se se pensa, por exemplo, nos dados

levantado por Richard Sennett [sociólogo] -o tempo

médio de emprego no vale do Silício [localizado na

Califórnia, EUA, concentra um grande número de

empresas de tecnologia e internet], por exemplo, é de

oito meses-, quem pode pensar num projeto de vida

nessas circunstâncias?

Na época da modernidade sólida, quem entrasse como

aprendiz nas fábricas da Renault ou Ford iria com toda

probabilidade ter ali um longa carreira e se aposentar

após 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para

Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não

tem idéia do que poderá lhe acontecer dali a meio ano!

E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos

da vida humana.

Em "Liquid Love" [Amor Líquido], eu exploro o impacto                                                 

dessa situação nas relações humanas, quando o

indivíduo se vê diante de um dilema terrível: de um

lado, ele precisa dos outros como do ar que respira,

mas, ao mesmo tempo, ele tem medo de desenvolver

relacionamentos mais profundos, que o imobilizem

num mundo em permanente movimento.



O sr. poderia discutir os riscos da pós-modernidade?

Uma das características do que eu chamo de

"modernidade sólida" é a de que as maiores ameaças

para a existência humana eram muito mais óbvias. Os

perigos eram reais, palpáveis e não havia muito

mistério sobre o que fazer para neutralizá-los ou, ao

menos, aliviá-los. Era, por exemplo, óbvio que alimento

-e só alimento- era o remédio para a fome.

Os riscos de hoje são de outra ordem, não se podendo

sentir ou tocar em muitos deles, apesar de estarmos

todos expostos, em algum grau, a suas consequências.

Não podemos, por exemplo, cheirar, ouvir, ver ou tocar

as condições climáticas que gradativamente, mas sem

trégua, estão se deteriorando.

O mesmo acontece com os níveis de radiação e

poluição, a diminuição das matérias-primas e fontes de

energia não-renováveis e os processos de globalização

sem controle político ou ético que solapam as bases de

nossa existência e sobrecarregam a vida dos

indivíduos com um grau de incerteza e ansiedade sem

precedentes. É nesse ponto que a sociologia tem um

papel importante a desempenhar.

Diferentemente dos perigos antigos, os riscos que

envolvem a condição humana no mundo das

dependências globais podem não só deixar de ser

notados, mas também minimizados, mesmo quando

notados. Do mesmo modo, as ações necessárias para

exterminar ou limitar os riscos podem ser desviadas

das verdadeiras fontes do perigo e canalizadas para

alvos errados. Quando a complexidade da situação é

descartada, fica fácil apontar para aquilo que está mais

à mão como sendo causa das incertezas e ansiedades

modernas.

Veja, por exemplo, o caso das manifestações contra

imigrantes que ocorrem pela Europa. Vistos como "o

inimigo" próximo, eles são apontados como os

culpados pelas frustrações da sociedade, como

aqueles que põem obstáculo aos projetos de vida dos

demais cidadãos. A noção de "solicitante de asilo"

adquire, nesse quadro, uma conotação negativa, ao

mesmo tempo em que as leis que regem a imigração e

naturalização se tornam mais restritivas, e a promessa

de construção de "centros de detenção" para

estrangeiros confere vantagens eleitorais a plataformas

políticas.

Para confrontar sua condição existencial e enfrentar

seus desafios, a humanidade precisa se colocar acima

dos dados da experiência a que tem acesso enquanto

indivíduos. Ou seja, a percepção individual, para ser

ampliada, necessita da assistência de intérpretes

munidos com dados não amplamente disponíveis à

experiência individual. E a sociologia, enquanto parte

integrante desse processo interpretativo -um processo

em andamento e permanentemente inconclusivo-,

constitui um empenho constante para ampliar os

horizontes cognitivos dos indivíduos e uma voz

potencialmente poderosa nesse diálogo sem fim com a

condição humana.



Em muitas partes de sua obra o senhor soa nostálgico,

às vezes até mesmo do que chama de "modernidade

sólida", quando a humanidade aparentemente era

menos ansiosa e tinha uma vida mais estável e segura.

Concorda com essa interpretação?

Eu não diria isso. Não acredito que haja um progresso

linear no que diz respeito à felicidade humana.

Podemos dizer que, como um pêndulo, nos movemos

de tempos mais felizes para tempos menos felizes e de

menos felizes para mais felizes. Hoje temos medo e

somos infelizes do mesmo modo como também

tínhamos medo e éramos infelizes há cem anos, mas

por razões diferentes. A modernidade sólida tinha um

aspecto medonho: o espectro das botas dos soldados

esmagando as faces humanas. Virtualmente todo

mundo, quer na esquerda ou na direita, assumia que a

democracia, quando existia, era para hoje ou amanhã,

mas que uma ditadura estava sempre à vista; no limite,

o totalitarismo poderia sempre chegar e sacrificar a

liberdade em nome da segurança e da estabilidade.

De outro lado, como Sennett mostrou, a antiga

condição de emprego poderia destruir a criatividade

humana, as habilidades humanas, mas construía a

vida humana, que podia ser planejada. Tanto os

trabalhadores como os donos de fábrica sabiam muito

bem que eles iriam se encontrar novamente amanhã,

depois de amanhã, no ano seguinte, pois os dois lados

dependiam um do outro.

Bem, nada disso existe hoje. Dificilmente um outro tipo

de stalinismo voltará, e o pesadelo de hoje não é mais

a bota dos soldados esmagando as faces humanas.

Temos outros pesadelos. O chão onde piso pode, de

repente, se abrir como num terremoto, sem que haja

nada no que me segurar. A maioria das pessoas não

pode planejar seu futuro por muito tempo adiante. Os

acadêmicos são ainda umas das poucas pessoas que

têm essa possibilidade. Na maioria dos empregos

podemos ser demitidos sem uma palavra de alerta.

Você chama isso de nostalgia? Não sei...

A questão é que, como já disse antes, aproximando-

me dos meus 80 anos, não mais acredito que possa

existir algo como uma sociedade perfeita. A vida é

como um lençol muito curto: quando se cobre o nariz,

os pés ficam frios, e, quando se cobrem os pés, o nariz

fica gelado. Mas insisto em que a sociedade que

obsessivamente se vê como não sendo

suficientemente boa é a única definição que posso dar

de uma boa sociedade.



Quando e como o senhor abandonou o marxismo?

Considera-se ainda um socialista?

Nunca abandonei Marx, apesar de minha intoxicação

pelo "marxismo realmente existente" ter sido,

felizmente, breve; de fato, terminou bem cedo, no

momento em que o vi como era: um imenso obstáculo

para a recepção e manutenção da mensagem ética de

Marx -de que a qualidade de uma sociedade deve ser

testada pelo critério da justiça e "fair play" que

regulamenta a coletividade humana.

Eu espero ter o direito de dizer que nunca abandonei

essa crença. O mesmo se aplica ao meu socialismo,

que, em meu entender, se resume à convicção de que,

assim como o poder de carga de uma ponte se mede

não pela força média de todos os pilares, mas pela

força de seu pilar mais fraco, a qualidade de uma

sociedade também não se mede pelo PIB (Produto

Interno Bruto), pela renda média de sua população,

mas pela qualidade de vida de seus membros mais

fracos.

O socialismo para mim não é o nome de um tipo

particular de sociedade. É, sim, exatamente como o

postulado de Marx de justiça social, uma dor aguda e

constante de consciência que nos impulsiona a corrigir

ou remover variedades sucessivas de injustiça. Não

acredito mais na possibilidade (e até no desejo) de

uma "sociedade perfeita", mas acredito numa "boa

sociedade", definida como a sociedade que se

recrimina sem cessar por não ser suficientemente boa

e não estar fazendo o suficiente para se tornar

melhor...



Quando se acompanha sua carreira, o sr. parece um

filósofo que, devido às condições da Polônia do pós-

guerra, foi temporariamente desviado de sua vocação,

voltando-se para a sociologia. Concorda com essa

descrição?

Essa seria uma reconstrução justa do que realmente

aconteceu e de como eu encarava a situação, mas

com uma ressalva. Eu não era um filósofo profissional

antes de ter me desviado para a sociologia, como você

sugere; nem desejava me tornar um.

Antes de me juntar ao Exército polonês e voltar para

meu país natal por essa via, eu fiz dois anos de curso

universitário de física por correspondência (na Rússia,

os estrangeiros não tinham permissão de viver em

cidades grandes, onde havia universidades).

Lembro-me de, como tantos adolescentes, me sentir

um tanto apavorado e esmagado pelos mistérios e

enigmas do universo e de desejar ardentemente

dedicar minha vida a desvendar esses mistérios e a

solucionar esses enigmas. Meus estudos foram,

entretanto, interrompidos pelo apelo das armas quando

eu tinha 18 anos, para jamais serem retomados.

Deixando o Exército em 1945, eu me vi novamente

numa Polônia arruinada pela ocupação nazista, que se

somava a um anterior legado de miséria, de

desemprego em massa, de conflitos étnicos e

religiosos aparentemente insolúveis e de exploração de

classe brutal. Os desafios que meu país confrontava

eram, pois, muito maiores do que os do resto da

Europa, pois, além de reconstruir fábricas e casas

destruídas, semear campos abandonados e colocar a

economia de pé novamente, a Polônia exigia uma

batalha exaustiva contra uma pobreza sedimentada e

contra profundas divisões de classe; a abertura das

oportunidades educativas também era tarefa urgente,

já que até então estas haviam estado fechadas à

grande maioria da nação.
Eu imagino que a crença de que a sociologia poderia

melhorar a vida humana ao reformar o meio social no

qual esta se conduzia era parte integral do "projeto de

modernidade". Eu até mesmo diria que o projeto

consistia exatamente nisso. Assim, as pessoas que

estavam seriamente empenhadas em levar a

sociedade a desenvolver condições mais desejáveis a

fim de ser "moderna" -ou seja, mais humana e melhor

estruturada para promover a felicidade e dignidade

humanas- não titubeavam um instante sobre que tipo

de conhecimento deveria ser mais urgentemente

adquirido, dominado e colocado em prática.

Certamente teria que ser a "ciência da sociedade", a

sociologia, a disciplina que surgira para servir ao

"projeto de modernidade". Tal convicção sobre a

missão da sociologia e tal fé em seu poder de realizar

sua missão deve, sem dúvida, intrigar um leitor

contemporâneo, mas somente porque vivemos hoje

numa era diferente, quando o mantra do dia não é mais

"salvação pela sociedade"; infelizmente o que se ouve

agora, como homílias insistentes, é que devemos

buscar soluções individuais para problemas produzidos

socialmente e sofridos coletivamente.



Como foi a experiência de viver no que o senhor

descreveu como a "idade áurea", quando as

"universidades polonesas tiraram o máximo de

vantagem da liberdade ganha nas batalhas do "outubro

polonês" [relativa abertura do regime comunista,

ocorrida em 1956]"?

Foi algo fascinante, diferente de qualquer outra

universidade que conheci; diferente, diria, de qualquer

vida universitária existente. Há situações de liberdade

acadêmica praticamente sem limites, quando todos os

tipos de "Weltanchauungen" [visões de mundo],

estratégias de pesquisa, hierarquias de relevância e

prioridades, estilos de se contar histórias se

encontram, conversam e argumentam.

E há também situações em que os sociólogos se

movem pelo sentido de urgência, e não somente pela

necessidade de completar dissertações a tempo e

assegurar uma próxima promoção; urgência de dar sua

própria contribuição para a batalha por uma sociedade

melhor, mais hospitaleira aos seres humanos e à sua

humanidade. E também por uma vocação, uma missão

de só se dedicar a isso. O que foi peculiar na situação

pós-outubro polonês foi que as duas situações

emergiram ao mesmo tempo e continuaram durante

algum tempo a coincidir e a se fertilizar

reciprocamente.

Esse tipo de combinação entre sentimento de liberdade

e de propósito é uma felicidade de que a maioria dos

acadêmicos contemporâneos infelizmente carece, quer

eles tenham ou não consciência do que estão

perdendo. Na maioria dos lugares do mundo a

liberdade de expressão acadêmica é completa ou

quase completa, somente limitada pelos regulamentos

e regras (muitas vezes penosas e até ridículas) da

carreira e de outras invenções da burocracia

universitária; mas, fora isso, as escolhas são deixadas

inteiramente livres para cada um.

Há, no entanto, muito pouco sentido de propósito e

particularmente pouco sentido da relevância de seu

próprio trabalho para o mundo fora dos muros da

academia, como se todos compartilhassem da sina da

filosofia lamentada por Wittgenstein, de "deixar o

mundo como é". Como muitos sociólogos americanos e

também alguns europeus se queixam, os estudos

sociais acadêmicos perderam qualquer ligação com a

agenda pública. Parece haver poucos, se é que há

algum freguês para os modelos de "boa sociedade",

que costumava ser a preocupação central e o forte da

sociologia com inclinações humanísticas.

As classes educadas não estão mais interessadas na

tarefa de ilustração e de elevação espiritual do povo.

Os intelectuais pararam, em grande parte, de se definir

pela responsabilidade que têm para com "o povo", a

nação e a humanidade.



O sr. se referiu aos "muros da academia" como um

obstáculo para o pensamento livre. Há alguma

esperança para as universidades?

O que quer que as universidades façam, elas não

conseguirão jamais pôr um fim à curiosidade humana,

que talvez tenha que sair da academia para se

satisfazer. Se se pensar nas limitações que a

organização universitária hoje impõe ao

desenvolvimento do pensamento livre, basta olhar para

o que acontece com a filosofia e a sociologia tal como

são praticadas nos departamentos universitários e em

outros "locais de autoridade", ou seja, os lugares em

que afirmações reconhecidas como pertencentes a

uma dada disciplina podem ser feitas e de onde elas

devem ser expressas para serem reconhecidas como

tais. Nesse quadro, pois, a filosofia e a sociologia se

ligam a interesses intelectuais, estilos de pensamento

e modos de argumentação bastante diferentes.

Cada uma dessas duas disciplinas acadêmicas se

pretende de posse de grupos distintos de "dados

primários" e os processa, interpreta, verifica e refuta de

maneiras diferentes. Dominar o cânon, tanto da

sociologia quanto da filosofia, e adquirir credenciais

oficialmente reconhecidas e confirmadas em cada uma

delas toma todo o tempo dos estudantes universitários,

e competência em uma dessas disciplinas acadêmicas

é raramente exigida para se adquirir o grau na outra.

Posso entender a preocupação dos sociólogos

acadêmicos com a circunscrição, as barreiras e a

defesa de suas possessões contra os competidores

que lutam pela obtenção do dinheiro das fundações e

do governo; mas o que não podemos esquecer é que

essa preocupação se origina na realidade da vida

acadêmica, e não na lógica da experiência humana

que a sociologia é chamada a servir.



Quão difícil foi para o senhor se ajustar à cultura da

Grã-Bretanha, para onde veio com mais de 40 anos?

Ajustamento nunca ocupou um lugar prioritário no meu

programa de vida. Nesse campo não fui além do

básico, isto é, além de aprender o idioma local e me

fazer compreensível, evitando os mais crassos "faux

pas". Tal como me recordo, ao chegar à Grã-Bretanha

não estava particularmente preocupado em esconder,

sufocar ou erradicar minha idiossincrasia, em

abandonar o que no meu modo de agir e pensar

poderia parecer estranho aos nativos. Tornar-me como

os outros e me dissolver no plano de fundo não me

parecia tarefa nem possível nem especialmente

atraente e nunca foi minha intenção.

Como eu via na época, o desafio estava em outro

lugar: como revelar para os meus colegas e alunos

britânicos o sentido das minhas diferenças e talvez

induzi-los a achar algum interesse e uso no que era

inicialmente alheio a eles.

"Ajustamento" sugere uma via de mão única. Ao

contrário, eu pensava em termos de troca igualitária: o

único meio de retribuir a hospitalidade dos meus

anfitriões britânicos era oferecer a eles algo que não

tinham ainda e não poderiam adquirir a não ser num

encontro face a face com um pensamento e modo de

agir alternativos; algo novo e diferente, que pudesse,

eventualmente, enriquecê-los do mesmo modo que eu

tenho me enriquecido com o meu encontro com o

cotidiano britânico. Eu, na verdade, desejava ser

aceito, mas aceito precisamente pelo que eu era, por

minha dessemelhança.

Minha sorte foi que, com essa atitude, eu aterrissei e

me estabeleci na Grã-Bretanha. Posso pensar em

muitos países em que viver com tal atitude teria sido

muito mais difícil e social e espiritualmente custoso. Se

alguém deve ser um exilado ou estrangeiro, a Grã-

Bretanha é o lugar certo para estar. Pode-se aí esperar

boa vontade, tolerância e bastante hospitalidade, com

a condição de não querer fingir que é inglês.....



Em sua obra o senhor se refere frequentemente a

romances. O que acha que a literatura pode ensinar

sobre a sociedade e sobre a condição humana? Mais

especificamente, o senhor confessa ser Borges uma

de suas grandes fontes inspiradoras. Poderia nos

explicar no que um escritor que parece não tratar

especificamente de questões sociais lhe é importante?

Devo começar lembrando que meus professores na

Polônia nunca se preocuparam com as diferenças

entre "filosofia social" e "sociologia propriamente dita";

mas, acima de tudo, eles consideravam os romancistas

e poetas como seus camaradas de armas, e não como

competidores e, muito menos, como antagonistas. Eu

aprendi a considerar a sociologia como uma daquelas

numerosas narrativas, de muitos estilos e gêneros, que

recontam, após terem primeiramente processado e

reinterpretado, a experiência humana de estar no

mundo. A tarefa conjunta de tais narrativas era

oferecer um insight mais profundo no modo como essa

experiência foi construída e pensada e, desse modo,

ajudar os seres humanos na sua luta pelo controle de

seus destinos individuais e coletivos. Nessa tarefa, a

narrativa sociológica não era "por direito" superior a

outras narrativas, pois tinha que demonstrar e provar

seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto.

Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstói,

Balzac, Dickens, Dostoiévski, Kafka ou Thomas Morus

muito mais insights sobre a substância das

experiências humanas do que de centenas de

relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo

aprendi a não perguntar de onde uma determinada

idéia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as

respostas humanas à sua condição, assunto tanto da

sociologia quanto das "belle lettres".

O que aprendi com Borges? Acima de tudo, aprendi

sobre os limites de certas ilusões humanas: sobre a

futilidade de sonhos de precisão total, de exatidão

absoluta, de conhecimento completo, de informação

exaustiva sobre tudo; sobre as ambições humanas

que, no final, se revelam ilusórias e nos mostram

impotentes. Lembremos, por exemplo, do conto de

Borges que fala sobre o mapa: o sonho do mapa exato

que acaba ficando do mesmo tamanho da própria coisa

mapeada e, portanto, sem nenhuma utilidade. Não me

ocorre nenhum filósofo ou sociólogo que pôde tratar de

tais questões tão persuasivamente, tão

convincentemente, tão espetacularmente.

Em parte isso se deve à posição muito luxuosa e

mesmo invejável de nunca ter sido um acadêmico e de

nunca ter estado submetido a uma disciplina. Fora dos

muros da academia os romancistas desfrutam da

liberdade que é negada, por exemplo, aos sociólogos

profissionais, que têm seus trabalhos avaliados pela

conformidade destes com os procedimentos que

definem e distinguem a profissão, e não por sua

relevância humana. Quando se envia um artigo a uma

revista científica para ser avaliado por um "par", isso só

tem um impacto: reduzir a originalidade ao

denominador comum!

Borges nunca teve que se submeter a esse tipo de

coisa. Note que os dois cientistas sociais da

modernidade realmente interessantes e ainda hoje

extremamente tópicos foram Karl Marx [1818-1883] e

George Simmel [1858-1918], e eles têm também essa

característica comum: ambos eram free-lancers e

nenhum deles ensinou nas universidades!

Mas, acima de tudo, a maior vantagem da narrativa

dos romancistas é que ela se aproxima da experiência

humana do que a maioria dos trabalhos das ciências

sociais. Elas são capazes de reproduzir a não-

determinação, a não-finalidade, a ambivalência

obstinada e insidiosa da experiência humana e a

ambiguidade de seu significado.



O senhor tem sempre enfatizado a necessidade de

todos nós "questionarmos ostensivamente as

premissas de nosso modo de vida". Teria alguma

sugestão a nos dar sobre as respostas a esses

questionamentos?

Maurice Blanchot [escritor e crítico francês, 1907-2003]

disse certa vez, em palavras que ficaram famosas, que

as respostas são a má sorte das perguntas.

De fato, cada resposta implica fechamento, fim da

estrada, fim da conversa. Também sugere nitidez,

harmonia, elegância; enfim, qualidades que o mundo

narrado não possui. Tenta forçar o mundo numa

camisa-de-força na qual ele definitivamente não cabe.

Corta as opções, a multidão de sentidos e

possibilidades que toda condição humana implica a

cada momento. Promete falsamente uma solução

simples para um busca provocada e impelida pela

complexidade. Também mente, pois declara que as

contradições e incompatibilidades que provocam as

questões são fantasmas -efeitos de erros linguísticos

ou lógicos, em vez de qualidades endêmicas e

irremovíveis da condição humana.

Creio que a experiência humana é mais rica do que

qualquer de suas interpretações, pois nenhuma delas,

por mais genial e "compreensiva" que seja, pode

exauri-la. Aqueles que embarcam numa vida de

conversação com a experiência humana deveriam

abandonar todos os sonhos de um fim tranquilo de

viagem. Essa viagem não tem um final feliz -toda sua

felicidade se encontra na própria jornada.



O senhor descreveu modestamente um de seus livros

mais recentes como um "discussion paper". Diria que é

por acaso ou propositadamente que tem se dedicado a

escrever ensaios?

No curso de meio século de estudos e de escrita nunca

consegui adquirir a habilidade de terminar um livro...

Com o passar do tempo, eu reconheço que todos os

meus livros foram entregues ao editor inacabados. Em

regra, antes mesmo que o manuscrito seja impresso,

fica claro para mim que o que me parecia havia pouco

como "o fim" era, de fato, um começo com uma

sequência desconhecida, mas tremendamente

necessária. Por trás de cada resposta percebo que

novas questões estão piscando; que mais, muito mais,

restou a ser explorado e compreendido e quão pouco,

de fato, foi revelado pela "acabamento bem-sucedido"

das explorações passadas. As perguntas mais

intrigantes e provocantes emergem, via de regra, após

as respostas.

No decurso dos anos aprendi a apreciar a queixa de

Adorno [filósofo alemão, 1903-69] sobre a convenção

linear da nossa escrita: por causa dessa convenção

nós não conseguimos transmitir a lógica do

pensamento que, diferentemente da escrita, se move

em círculos e está invariavelmente forçada, pelo seu

próprio progresso, a fazer perpétuos retornos.

Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora aposentada da USP e

pesquisadora associada do Centro de Estudos Latino-Americanos da

Universidade de Cambridge (Reino Unido). É autora de "As Muitas

Faces da História" (ed. Unesp).