ZYGMUNT BAUMAN DEFENDE A LITERATURA
COMO FORMA DE COMPREENSÃO DA CONDIÇÃO
HUMANA E ATACA OS "MUROS DA ACADEMIA" E
A ALIENAÇÃO DOS INTELECTUAIS
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
especial para a Folha
Um renomado periódico espanhol referiu-se
recentemente a Zygmunt Bauman (1927) como um dos
poucos sociólogos contemporâneos "nos quais ainda
se encontram idéias". Opinião semelhante é
frequentemente exposta por críticos de várias partes
do mundo quando refletem sobre o pensamento desse
intelectual polonês radicado na Inglaterra desde 1971 e
empenhado, há meio século, em "traduzir o mundo em
textos", como diz um deles. Indiferente às fronteiras
disciplinares, Bauman é um dos líderes da chamada
"sociologia humanística".
De um lado, não se encontram em suas obras
abstrações ou análises e levantamentos estatísticos, e,
de outro, são ali aproveitadas quaisquer idéias e
abordagens que possam ajudá-lo na tarefa de
compreender a complexidade e diversidade da vida
humana. Essa é uma das razões pelas quais Bauman
tem muito a dizer para uma gama de leitores muito
maior do que normalmente se espera de um trabalho
de sociologia mais convencional, o que condiz com
suas próprias ambições de atingir um público composto
de pessoas comuns "se esforçando por ser humanas"
num mundo mais e mais desumano. Como ele gosta
de insistir, seu objetivo é mostrar a seus leitores que o
mundo pode ser diferente e melhor do que é.
Autor prolífico e de renome internacional, pode-se dizer
que sua fama e prolixidade aumentaram
significativamente após sua aposentadoria, em 1990:
16 de seus 25 livros foram publicados após essa data e
cinco obras dedicadas ao estudo de seu pensamento
foram escritas nos últimos anos.
Descrito certa vez como "profeta da pós-modernidade"
(com o que não concorda), por suas reflexões sobre as
condições do mundo da "modernidade líquida", os
temas abordados por Bauman tendem a ser amplos,
variados e especialmente focalizados na vida cotidiana
dos homens e mulheres comuns. Holocausto,
globalização, sociedade de consumo, amor,
comunidade, individualidade são algumas das
questões de que trata, sempre salientando a dimensão
ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz
respeito à condição humana. Preocupado com a sina
dos oprimidos, Bauman é uma das vozes a
permanentemente questionar a ação dos governos
neoliberais que dão amplo apoio às forças do mercado
ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade
de promover a justiça social.
Nascido na Posnânia em 1925, Bauman escapou dos
horrores do Holocausto que aguardavam os judeus
poloneses na Segunda Guerra, ao fugir com sua
família para a Rússia em 1939. De lá voltou após a
guerra, quando se filiou ao Partido Comunista, estudou
na Universidade de Varsóvia e conheceu Janina, com
quem está casado há 55 anos e com quem teve três
filhas: Anna (matemática), Lydia (pintora) e Irena
(arquiteta).
Confiantes e animados pelo sonho de criar uma
sociedade mais justa e igualitária, Zygmunt e Janina ali
estiveram a construir suas carreiras (ele como
professor da Universidade de Varsóvia e, ela, como
editora de enredos cinematográficos) e criar sua
família, até que uma nova onda de anti-semitismo e
repressão esmagou os seus sonhos e os forçou ao
exílio. Após três anos em Israel, o convite a Bauman
para ser chefe do departamento de sociologia da
Universidade de Leeds os trouxe à Inglaterra, onde
permanecem até hoje.
Bauman recebeu o Mais! em Leeds, na confortável
casa onde mora desde que ali chegou, há mais de 30
anos. "Naquela época achei a cidade horrível, imunda",
me disse Janina, comentando a mudança que ocorreu
nos últimos tempos e que transformou Leeds, de um
sujo centro industrial, em uma cidade bonita,
verdejante e cheia de vida.
O senhor já foi descrito como um "profeta da pós-
modernidade" e os termos "pós-moderno" e "pós-
modernidade" aparecem em títulos de quatro de seus
livros. Estaria sugerindo que ocorreu uma mudança
cultural e social significativa na última geração
suficientemente grande para que falemos de um novo
período da história?
"modernidade líquida" em vez de "pós-modernidade"
(meus trabalhos mais recentes evitam esse termo) é
que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão
semântica que não distingue sociologia pós-moderna
de sociologia da pós-modernidade, entre "pós-
modernismo" e "pós-modernidade". No meu
vocabulário, "pós-modernidade" significa uma
sociedade (ou, se se prefere, um tipo de condição
humana), enquanto que "pós-modernismo" se refere a
uma visão de mundo que pode surgir, mas não
necessariamente, da condição pós-moderna.
Procurei sempre enfatizar que, do mesmo modo que
ser um ornitólogo não significa ser um pássaro, ser um
sociólogo da pós-modernidade não significa ser um
pós-modernista, o que definitivamente não sou. Ser um
pós-modernista significa ter uma ideologia, uma
percepção do mundo, uma determinada hierarquia de
valores que, entre outras coisas, descarta a idéia de
um tipo de regulamentação normativa da comunidade
humana e assume que todos os tipos de vida humana
se equivalem, que todas as sociedades são igualmente
boas ou más; enfim, uma ideologia que se recusa a
fazer julgamentos e a debater seriamente questões
relativas a modos de vida viciosos e virtuosos, pois, no
limite, acredita que não há nada a ser debatido. Isso é
pós-modernismo.
Mas sempre estive interessado na sociologia da pós-
modernidade, meu tema tem sempre sido compreender
esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de
sociedade que vem surgindo ao nosso redor; e a vejo
como uma condição que ainda se mantém
eminentemente moderna nas suas ambições e no seu
"modus operandi" (ou seja, no seu esforço de
modernização compulsiva, obsessiva), mas que se
acha desprovida das antigas ilusões de que o fim da
jornada estava logo adiante.
É nesse sentido que pós-modernidade é, para mim,
modernidade sem ilusões. Diferentemente da
sociedade moderna anterior, a que eu chamo de
modernidade sólida, que também estava sempre a
desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz
com uma perspectiva de longa duração, com a
intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo
está agora sempre a ser permanentemente
desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma
permanência.
Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da
"liquidez" para caracterizar o estado da sociedade
moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por
uma incapacidade de manter a forma. Nossas
instituições, quadros de referência, estilos de vida,
crenças e convicções mudam antes que tenham tempo
de se solidificar em costumes, hábitos e verdades
"auto-evidentes". É verdade que a vida moderna foi
desde o início "desenraizadora" e "derretia os sólidos e
profanava os sagrados", como os jovens Marx e
Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se
fazia para ser novamente "reenraizado", agora as
coisas todas -empregos, relacionamentos, know-hows
etc.- tendem a permanecer em fluxo, voláteis,
desreguladas, flexíveis.
Como um exemplo dessa perspectiva, li, num dia
desses, que um famoso arquiteto de Los Angeles
estava se propondo a construir casas que
permanecessem lindas "para sempre". Ao ser
questionado sobre o que queria dizer com isso, ele
teria respondido: até daqui a 20 anos! Isso é hoje "para
portanto, tentar compreender quais as consequências
dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu
cotidiano. Virtualmente todos os aspectos da vida
humana são afetados quando se vive a cada momento
sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais
sentido.
Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo
o mundo a terem um projeto de vida, a decidir o que
queriam ser e, a partir daí, implementar esse programa
consistentemente, passo a passo, hora a hora. Ora, ter
uma identidade fixa, como Sartre aconselhava, é hoje,
nesse mundo fluido, uma decisão de certo modo
suicida. Se se pensa, por exemplo, nos dados
levantado por Richard Sennett [sociólogo] -o tempo
médio de emprego no vale do Silício [localizado na
Califórnia, EUA, concentra um grande número de
empresas de tecnologia e internet], por exemplo, é de
oito meses-, quem pode pensar num projeto de vida
nessas circunstâncias?
Na época da modernidade sólida, quem entrasse como
aprendiz nas fábricas da Renault ou Ford iria com toda
probabilidade ter ali um longa carreira e se aposentar
após 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para
Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não
tem idéia do que poderá lhe acontecer dali a meio ano!
E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos
da vida humana.
dessa situação nas relações humanas, quando o
indivíduo se vê diante de um dilema terrível: de um
lado, ele precisa dos outros como do ar que respira,
mas, ao mesmo tempo, ele tem medo de desenvolver
relacionamentos mais profundos, que o imobilizem
num mundo em permanente movimento.
O sr. poderia discutir os riscos da pós-modernidade?
Uma das características do que eu chamo de
"modernidade sólida" é a de que as maiores ameaças
para a existência humana eram muito mais óbvias. Os
perigos eram reais, palpáveis e não havia muito
mistério sobre o que fazer para neutralizá-los ou, ao
menos, aliviá-los. Era, por exemplo, óbvio que alimento
-e só alimento- era o remédio para a fome.
Os riscos de hoje são de outra ordem, não se podendo
sentir ou tocar em muitos deles, apesar de estarmos
todos expostos, em algum grau, a suas consequências.
Não podemos, por exemplo, cheirar, ouvir, ver ou tocar
as condições climáticas que gradativamente, mas sem
trégua, estão se deteriorando.
O mesmo acontece com os níveis de radiação e
poluição, a diminuição das matérias-primas e fontes de
energia não-renováveis e os processos de globalização
sem controle político ou ético que solapam as bases de
indivíduos com um grau de incerteza e ansiedade sem
precedentes. É nesse ponto que a sociologia tem um
papel importante a desempenhar.
Diferentemente dos perigos antigos, os riscos que
envolvem a condição humana no mundo das
dependências globais podem não só deixar de ser
notados, mas também minimizados, mesmo quando
notados. Do mesmo modo, as ações necessárias para
exterminar ou limitar os riscos podem ser desviadas
das verdadeiras fontes do perigo e canalizadas para
alvos errados. Quando a complexidade da situação é
descartada, fica fácil apontar para aquilo que está mais
à mão como sendo causa das incertezas e ansiedades
modernas.
Veja, por exemplo, o caso das manifestações contra
imigrantes que ocorrem pela Europa. Vistos como "o
inimigo" próximo, eles são apontados como os
culpados pelas frustrações da sociedade, como
demais cidadãos. A noção de "solicitante de asilo"
adquire, nesse quadro, uma conotação negativa, ao
mesmo tempo em que as leis que regem a imigração e
naturalização se tornam mais restritivas, e a promessa
de construção de "centros de detenção" para
estrangeiros confere vantagens eleitorais a plataformas
políticas.
Para confrontar sua condição existencial e enfrentar
seus desafios, a humanidade precisa se colocar acima
dos dados da experiência a que tem acesso enquanto
indivíduos. Ou seja, a percepção individual, para ser
ampliada, necessita da assistência de intérpretes
munidos com dados não amplamente disponíveis à
experiência individual. E a sociologia, enquanto parte
integrante desse processo interpretativo -um processo
em andamento e permanentemente inconclusivo-,
constitui um empenho constante para ampliar os
horizontes cognitivos dos indivíduos e uma voz
potencialmente poderosa nesse diálogo sem fim com a
condição humana.
Em muitas partes de sua obra o senhor soa nostálgico,
às vezes até mesmo do que chama de "modernidade
sólida", quando a humanidade aparentemente era
menos ansiosa e tinha uma vida mais estável e segura.
Concorda com essa interpretação?
linear no que diz respeito à felicidade humana.
Podemos dizer que, como um pêndulo, nos movemos
de tempos mais felizes para tempos menos felizes e de
menos felizes para mais felizes. Hoje temos medo e
somos infelizes do mesmo modo como também
tínhamos medo e éramos infelizes há cem anos, mas
por razões diferentes. A modernidade sólida tinha um
aspecto medonho: o espectro das botas dos soldados
esmagando as faces humanas. Virtualmente todo
mundo, quer na esquerda ou na direita, assumia que a
democracia, quando existia, era para hoje ou amanhã,
mas que uma ditadura estava sempre à vista; no limite,
o totalitarismo poderia sempre chegar e sacrificar a
liberdade em nome da segurança e da estabilidade.
De outro lado, como Sennett mostrou, a antiga
condição de emprego poderia destruir a criatividade
humana, as habilidades humanas, mas construía a
vida humana, que podia ser planejada. Tanto os
trabalhadores como os donos de fábrica sabiam muito
bem que eles iriam se encontrar novamente amanhã,
depois de amanhã, no ano seguinte, pois os dois lados
dependiam um do outro.
Bem, nada disso existe hoje. Dificilmente um outro tipo
de stalinismo voltará, e o pesadelo de hoje não é mais
a bota dos soldados esmagando as faces humanas.
Temos outros pesadelos. O chão onde piso pode, de
repente, se abrir como num terremoto, sem que haja
nada no que me segurar. A maioria das pessoas não
pode planejar seu futuro por muito tempo adiante. Os
acadêmicos são ainda umas das poucas pessoas que
têm essa possibilidade. Na maioria dos empregos
podemos ser demitidos sem uma palavra de alerta.
Você chama isso de nostalgia? Não sei...
A questão é que, como já disse antes, aproximando-
me dos meus 80 anos, não mais acredito que possa
existir algo como uma sociedade perfeita. A vida é
como um lençol muito curto: quando se cobre o nariz,
os pés ficam frios, e, quando se cobrem os pés, o nariz
fica gelado. Mas insisto em que a sociedade que
obsessivamente se vê como não sendo
suficientemente boa é a única definição que posso dar
de uma boa sociedade.
Considera-se ainda um socialista?
Nunca abandonei Marx, apesar de minha intoxicação
pelo "marxismo realmente existente" ter sido,
felizmente, breve; de fato, terminou bem cedo, no
momento em que o vi como era: um imenso obstáculo
para a recepção e manutenção da mensagem ética de
Marx -de que a qualidade de uma sociedade deve ser
testada pelo critério da justiça e "fair play" que
regulamenta a coletividade humana.
Eu espero ter o direito de dizer que nunca abandonei
essa crença. O mesmo se aplica ao meu socialismo,
que, em meu entender, se resume à convicção de que,
assim como o poder de carga de uma ponte se mede
não pela força média de todos os pilares, mas pela
força de seu pilar mais fraco, a qualidade de uma
sociedade também não se mede pelo PIB (Produto
Interno Bruto), pela renda média de sua população,
mas pela qualidade de vida de seus membros mais
fracos.
O socialismo para mim não é o nome de um tipo
particular de sociedade. É, sim, exatamente como o
postulado de Marx de justiça social, uma dor aguda e
constante de consciência que nos impulsiona a corrigir
ou remover variedades sucessivas de injustiça. Não
acredito mais na possibilidade (e até no desejo) de
uma "sociedade perfeita", mas acredito numa "boa
sociedade", definida como a sociedade que se
recrimina sem cessar por não ser suficientemente boa
e não estar fazendo o suficiente para se tornar
melhor...
filósofo que, devido às condições da Polônia do pós-
guerra, foi temporariamente desviado de sua vocação,
voltando-se para a sociologia. Concorda com essa
descrição?
Essa seria uma reconstrução justa do que realmente
aconteceu e de como eu encarava a situação, mas
com uma ressalva. Eu não era um filósofo profissional
antes de ter me desviado para a sociologia, como você
sugere; nem desejava me tornar um.
Antes de me juntar ao Exército polonês e voltar para
meu país natal por essa via, eu fiz dois anos de curso
universitário de física por correspondência (na Rússia,
os estrangeiros não tinham permissão de viver em
cidades grandes, onde havia universidades).
Lembro-me de, como tantos adolescentes, me sentir
um tanto apavorado e esmagado pelos mistérios e
enigmas do universo e de desejar ardentemente
dedicar minha vida a desvendar esses mistérios e a
solucionar esses enigmas. Meus estudos foram,
entretanto, interrompidos pelo apelo das armas quando
eu tinha 18 anos, para jamais serem retomados.
Deixando o Exército em 1945, eu me vi novamente
numa Polônia arruinada pela ocupação nazista, que se
somava a um anterior legado de miséria, de
desemprego em massa, de conflitos étnicos e
religiosos aparentemente insolúveis e de exploração de
classe brutal. Os desafios que meu país confrontava
eram, pois, muito maiores do que os do resto da
Europa, pois, além de reconstruir fábricas e casas
destruídas, semear campos abandonados e colocar a
economia de pé novamente, a Polônia exigia uma
batalha exaustiva contra uma pobreza sedimentada e
contra profundas divisões de classe; a abertura das
oportunidades educativas também era tarefa urgente,
já que até então estas haviam estado fechadas à
grande maioria da nação.
Eu imagino que a crença de que a sociologia poderia
melhorar a vida humana ao reformar o meio social no
qual esta se conduzia era parte integral do "projeto de
modernidade". Eu até mesmo diria que o projeto
consistia exatamente nisso. Assim, as pessoas que
estavam seriamente empenhadas em levar a
sociedade a desenvolver condições mais desejáveis a
fim de ser "moderna" -ou seja, mais humana e melhor
estruturada para promover a felicidade e dignidade
humanas- não titubeavam um instante sobre que tipo
de conhecimento deveria ser mais urgentemente
adquirido, dominado e colocado em prática.
Certamente teria que ser a "ciência da sociedade", a
sociologia, a disciplina que surgira para servir ao
"projeto de modernidade". Tal convicção sobre a
missão da sociologia e tal fé em seu poder de realizar
sua missão deve, sem dúvida, intrigar um leitor
contemporâneo, mas somente porque vivemos hoje
numa era diferente, quando o mantra do dia não é mais
"salvação pela sociedade"; infelizmente o que se ouve
agora, como homílias insistentes, é que devemos
buscar soluções individuais para problemas produzidos
socialmente e sofridos coletivamente.
Como foi a experiência de viver no que o senhor
descreveu como a "idade áurea", quando as
"universidades polonesas tiraram o máximo de
vantagem da liberdade ganha nas batalhas do "outubro
polonês" [relativa abertura do regime comunista,
ocorrida em 1956]"?
Foi algo fascinante, diferente de qualquer outra
universidade que conheci; diferente, diria, de qualquer
vida universitária existente. Há situações de liberdade
acadêmica praticamente sem limites, quando todos os
tipos de "Weltanchauungen" [visões de mundo],
estratégias de pesquisa, hierarquias de relevância e
prioridades, estilos de se contar histórias se
encontram, conversam e argumentam.
E há também situações em que os sociólogos se
movem pelo sentido de urgência, e não somente pela
necessidade de completar dissertações a tempo e
assegurar uma próxima promoção; urgência de dar sua
própria contribuição para a batalha por uma sociedade
melhor, mais hospitaleira aos seres humanos e à sua
humanidade. E também por uma vocação, uma missão
de só se dedicar a isso. O que foi peculiar na situação
pós-outubro polonês foi que as duas situações
emergiram ao mesmo tempo e continuaram durante
algum tempo a coincidir e a se fertilizar
reciprocamente.
Esse tipo de combinação entre sentimento de liberdade
e de propósito é uma felicidade de que a maioria dos
acadêmicos contemporâneos infelizmente carece, quer
eles tenham ou não consciência do que estão
perdendo. Na maioria dos lugares do mundo a
liberdade de expressão acadêmica é completa ou
quase completa, somente limitada pelos regulamentos
e regras (muitas vezes penosas e até ridículas) da
carreira e de outras invenções da burocracia
universitária; mas, fora isso, as escolhas são deixadas
inteiramente livres para cada um.
Há, no entanto, muito pouco sentido de propósito e
particularmente pouco sentido da relevância de seu
próprio trabalho para o mundo fora dos muros da
academia, como se todos compartilhassem da sina da
filosofia lamentada por Wittgenstein, de "deixar o
mundo como é". Como muitos sociólogos americanos e
também alguns europeus se queixam, os estudos
sociais acadêmicos perderam qualquer ligação com a
agenda pública. Parece haver poucos, se é que há
algum freguês para os modelos de "boa sociedade",
que costumava ser a preocupação central e o forte da
sociologia com inclinações humanísticas.
As classes educadas não estão mais interessadas na
tarefa de ilustração e de elevação espiritual do povo.
Os intelectuais pararam, em grande parte, de se definir
pela responsabilidade que têm para com "o povo", a
nação e a humanidade.
obstáculo para o pensamento livre. Há alguma
esperança para as universidades?
O que quer que as universidades façam, elas não
conseguirão jamais pôr um fim à curiosidade humana,
que talvez tenha que sair da academia para se
satisfazer. Se se pensar nas limitações que a
organização universitária hoje impõe ao
desenvolvimento do pensamento livre, basta olhar para
o que acontece com a filosofia e a sociologia tal como
são praticadas nos departamentos universitários e em
outros "locais de autoridade", ou seja, os lugares em
que afirmações reconhecidas como pertencentes a
uma dada disciplina podem ser feitas e de onde elas
devem ser expressas para serem reconhecidas como
tais. Nesse quadro, pois, a filosofia e a sociologia se
ligam a interesses intelectuais, estilos de pensamento
e modos de argumentação bastante diferentes.
Cada uma dessas duas disciplinas acadêmicas se
pretende de posse de grupos distintos de "dados
primários" e os processa, interpreta, verifica e refuta de
maneiras diferentes. Dominar o cânon, tanto da
sociologia quanto da filosofia, e adquirir credenciais
oficialmente reconhecidas e confirmadas em cada uma
delas toma todo o tempo dos estudantes universitários,
e competência em uma dessas disciplinas acadêmicas
é raramente exigida para se adquirir o grau na outra.
Posso entender a preocupação dos sociólogos
acadêmicos com a circunscrição, as barreiras e a
defesa de suas possessões contra os competidores
que lutam pela obtenção do dinheiro das fundações e
do governo; mas o que não podemos esquecer é que
essa preocupação se origina na realidade da vida
acadêmica, e não na lógica da experiência humana
que a sociologia é chamada a servir.
Quão difícil foi para o senhor se ajustar à cultura da
Grã-Bretanha, para onde veio com mais de 40 anos?
Ajustamento nunca ocupou um lugar prioritário no meu
programa de vida. Nesse campo não fui além do
básico, isto é, além de aprender o idioma local e me
fazer compreensível, evitando os mais crassos "faux
pas". Tal como me recordo, ao chegar à Grã-Bretanha
não estava particularmente preocupado em esconder,
sufocar ou erradicar minha idiossincrasia, em
abandonar o que no meu modo de agir e pensar
poderia parecer estranho aos nativos. Tornar-me como
os outros e me dissolver no plano de fundo não me
parecia tarefa nem possível nem especialmente
atraente e nunca foi minha intenção.
Como eu via na época, o desafio estava em outro
lugar: como revelar para os meus colegas e alunos
britânicos o sentido das minhas diferenças e talvez
induzi-los a achar algum interesse e uso no que era
inicialmente alheio a eles.
"Ajustamento" sugere uma via de mão única. Ao
contrário, eu pensava em termos de troca igualitária: o
único meio de retribuir a hospitalidade dos meus
anfitriões britânicos era oferecer a eles algo que não
tinham ainda e não poderiam adquirir a não ser num
encontro face a face com um pensamento e modo de
agir alternativos; algo novo e diferente, que pudesse,
eventualmente, enriquecê-los do mesmo modo que eu
tenho me enriquecido com o meu encontro com o
cotidiano britânico. Eu, na verdade, desejava ser
aceito, mas aceito precisamente pelo que eu era, por
minha dessemelhança.
Minha sorte foi que, com essa atitude, eu aterrissei e
me estabeleci na Grã-Bretanha. Posso pensar em
muitos países em que viver com tal atitude teria sido
muito mais difícil e social e espiritualmente custoso. Se
alguém deve ser um exilado ou estrangeiro, a Grã-
Bretanha é o lugar certo para estar. Pode-se aí esperar
boa vontade, tolerância e bastante hospitalidade, com
a condição de não querer fingir que é inglês.....
Em sua obra o senhor se refere frequentemente a
romances. O que acha que a literatura pode ensinar
sobre a sociedade e sobre a condição humana? Mais
especificamente, o senhor confessa ser Borges uma
de suas grandes fontes inspiradoras. Poderia nos
explicar no que um escritor que parece não tratar
especificamente de questões sociais lhe é importante?
Devo começar lembrando que meus professores na
Polônia nunca se preocuparam com as diferenças
entre "filosofia social" e "sociologia propriamente dita";
mas, acima de tudo, eles consideravam os romancistas
e poetas como seus camaradas de armas, e não como
competidores e, muito menos, como antagonistas. Eu
aprendi a considerar a sociologia como uma daquelas
numerosas narrativas, de muitos estilos e gêneros, que
recontam, após terem primeiramente processado e
reinterpretado, a experiência humana de estar no
mundo. A tarefa conjunta de tais narrativas era
oferecer um insight mais profundo no modo como essa
experiência foi construída e pensada e, desse modo,
ajudar os seres humanos na sua luta pelo controle de
seus destinos individuais e coletivos. Nessa tarefa, a
narrativa sociológica não era "por direito" superior a
outras narrativas, pois tinha que demonstrar e provar
seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto.
Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstói,
Balzac, Dickens, Dostoiévski, Kafka ou Thomas Morus
muito mais insights sobre a substância das
experiências humanas do que de centenas de
relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo
aprendi a não perguntar de onde uma determinada
idéia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as
respostas humanas à sua condição, assunto tanto da
sociologia quanto das "belle lettres".
O que aprendi com Borges? Acima de tudo, aprendi
sobre os limites de certas ilusões humanas: sobre a
futilidade de sonhos de precisão total, de exatidão
absoluta, de conhecimento completo, de informação
exaustiva sobre tudo; sobre as ambições humanas
que, no final, se revelam ilusórias e nos mostram
impotentes. Lembremos, por exemplo, do conto de
Borges que fala sobre o mapa: o sonho do mapa exato
que acaba ficando do mesmo tamanho da própria coisa
mapeada e, portanto, sem nenhuma utilidade. Não me
ocorre nenhum filósofo ou sociólogo que pôde tratar de
tais questões tão persuasivamente, tão
convincentemente, tão espetacularmente.
Em parte isso se deve à posição muito luxuosa e
mesmo invejável de nunca ter sido um acadêmico e de
nunca ter estado submetido a uma disciplina. Fora dos
muros da academia os romancistas desfrutam da
liberdade que é negada, por exemplo, aos sociólogos
profissionais, que têm seus trabalhos avaliados pela
conformidade destes com os procedimentos que
definem e distinguem a profissão, e não por sua
relevância humana. Quando se envia um artigo a uma
revista científica para ser avaliado por um "par", isso só
tem um impacto: reduzir a originalidade ao
denominador comum!
Borges nunca teve que se submeter a esse tipo de
coisa. Note que os dois cientistas sociais da
modernidade realmente interessantes e ainda hoje
extremamente tópicos foram Karl Marx [1818-1883] e
George Simmel [1858-1918], e eles têm também essa
característica comum: ambos eram free-lancers e
nenhum deles ensinou nas universidades!
Mas, acima de tudo, a maior vantagem da narrativa
dos romancistas é que ela se aproxima da experiência
humana do que a maioria dos trabalhos das ciências
sociais. Elas são capazes de reproduzir a não-
determinação, a não-finalidade, a ambivalência
obstinada e insidiosa da experiência humana e a
ambiguidade de seu significado.
todos nós "questionarmos ostensivamente as
premissas de nosso modo de vida". Teria alguma
sugestão a nos dar sobre as respostas a esses
questionamentos?
Maurice Blanchot [escritor e crítico francês, 1907-2003]
disse certa vez, em palavras que ficaram famosas, que
as respostas são a má sorte das perguntas.
De fato, cada resposta implica fechamento, fim da
estrada, fim da conversa. Também sugere nitidez,
harmonia, elegância; enfim, qualidades que o mundo
narrado não possui. Tenta forçar o mundo numa
camisa-de-força na qual ele definitivamente não cabe.
Corta as opções, a multidão de sentidos e
possibilidades que toda condição humana implica a
cada momento. Promete falsamente uma solução
simples para um busca provocada e impelida pela
complexidade. Também mente, pois declara que as
contradições e incompatibilidades que provocam as
questões são fantasmas -efeitos de erros linguísticos
ou lógicos, em vez de qualidades endêmicas e
irremovíveis da condição humana.
Creio que a experiência humana é mais rica do que
qualquer de suas interpretações, pois nenhuma delas,
por mais genial e "compreensiva" que seja, pode
exauri-la. Aqueles que embarcam numa vida de
conversação com a experiência humana deveriam
abandonar todos os sonhos de um fim tranquilo de
viagem. Essa viagem não tem um final feliz -toda sua
felicidade se encontra na própria jornada.
O senhor descreveu modestamente um de seus livros
mais recentes como um "discussion paper". Diria que é
por acaso ou propositadamente que tem se dedicado a
escrever ensaios?
No curso de meio século de estudos e de escrita nunca
consegui adquirir a habilidade de terminar um livro...
Com o passar do tempo, eu reconheço que todos os
meus livros foram entregues ao editor inacabados. Em
regra, antes mesmo que o manuscrito seja impresso,
fica claro para mim que o que me parecia havia pouco
como "o fim" era, de fato, um começo com uma
sequência desconhecida, mas tremendamente
necessária. Por trás de cada resposta percebo que
novas questões estão piscando; que mais, muito mais,
restou a ser explorado e compreendido e quão pouco,
de fato, foi revelado pela "acabamento bem-sucedido"
das explorações passadas. As perguntas mais
intrigantes e provocantes emergem, via de regra, após
as respostas.
No decurso dos anos aprendi a apreciar a queixa de
Adorno [filósofo alemão, 1903-69] sobre a convenção
linear da nossa escrita: por causa dessa convenção
nós não conseguimos transmitir a lógica do
pensamento que, diferentemente da escrita, se move
em círculos e está invariavelmente forçada, pelo seu
próprio progresso, a fazer perpétuos retornos.
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora aposentada da USP e
pesquisadora associada do Centro de Estudos Latino-Americanos da
Universidade de Cambridge (Reino Unido). É autora de "As Muitas
Faces da História" (ed. Unesp).
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