Em artigo para o jornal La Repubblica, 19-01-2009, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman analisa as relações entre a cultura "intelectual" e a cultura "popular". E afirma que "a cultura líquido-moderna não tem 'pessoas' para 'cultivar', mas sim clientes para seduzir". A tradução é de Moisés Sbardelotto. Por Zygmunt Bauman Os conceitos de "being in a vanguard" (em inglês) ou "en avant-garde" (em francês), cunhados originalmente na linguagem e pela prática militar e, em seguida, transplantados, como metáfora, para outros setores da vida, significam mais do que um mero “estar na vanguarda”, em primeira linha, avançados mais à frente do que os outros arriscam estar; implicam traçar um novo caminho, tornar uma estrada transitável, tomar fundamentos sólidos que o abririam à circulação; em breve, sugiro mostrar, abrir e liberar a estrada até que os outros entrem e sigam adiante. Todas essas sugestões e essas implicações baseiam-se em um pressuposto às vezes explícito, às vezes tácito: que existem alguns “outros” (se já o sabíamos ou se até agora nunca pensamos) que deveriam estar desejosos e entusiasmados para seguir, não apenas quando a vanguarda tenha terminado o seu trabalho preparatório de reconhecimento. (...) Além do pressuposto de preparar/liberar/mostrar o percurso, o conceito de “vanguarda” comporta a visão de um movimento para frente – de progresso. Por essas duas razões, os futuristas, os impressionistas, os cubistas, os fauvistas, os surrealistas, os dadaístas, os expressionistas abstratos ou não, e numerosos outros movimento artísticos dos estimulantes tempos inclinados ao futurismo, estava plenamente no seu direito quando tomaram emprestada a ideia de vanguarda para descrever a sua posição e declarar as suas intenções. Pelas mesmas duas razões, porém, atribuir ou adotar a metáfora da “vanguarda” para descreve ou autodefinir novidades artísticas nos nossos tempos só poderia querer dizer roubar os méritos de algum outro, na esperança de que, enquanto isso, os ladrões se apropriem das belas lembranças da glória passada. Os movimentos vanguardistas de um tempo (mais precisamente, do início e da metade do século XX – os períodos anteriores à passagem do Estado “sólido” para o “líquido”) se consideravam, enquanto isso, veículos, e com plenos poderes, mas, sobretudo, unidade avançada do progresso com uma missão crucial a se realizar: ajudar os seus semelhantes a sair do revestimento de aço da tradição gasta, exausta e sempre mais estéril na qual foram fechados e abrir os seus olhos a novos modos, até agora inexplorados e ainda evitados, não só para se compreender a arte, mas também para se estar no mundo. (...) A vanguarda acreditava, como deveriam ter acreditado quando o culto do progresso era ainda a religião ascendente, e a fé nas férreas leis da história quase nunca ainda era interrogada, ter a história do seu lado. A história andava para frente e para trás, e assim faziam as artes, as tropas avançadas da cultura humana. As velas da história estavam esperando que o vento dos estúdios e dos laboratórios de arte soprasse. Quanto mais forte é esse vento, mas veloz andará a história... Nada do que foi dito acima com relação às artes permanece ainda verdadeiro na nossa sociedade líquido-moderna de consumidores. Stephen Fry, um ator britânico muito popular, sempre sobre os palcos do cinema e da televisão, renomado pela sua argúcia e o seu talento de narrador, modelo vivo do estilo de vida que os aspirantes membros da elite artístico-cultural gostariam tanto de abraçar, é um hóspede muito desejado em qualquer salão intelectual londrino e em qualquer festa que ambicione o posto de “fábula da cidade”, e um endereço muito desejado nas colunas de qualquer rede de contatos com uma razoável pretensão de prestígio e de relevo; em breve, uma pessoa de enorme influência sobre as mentes de qualquer coisa que pode ser definida como a atual “elite cultural”. Ao procurar explicar o fenomenal sucesso do sítio da Internet Facebook, o ótimo jornal British Sunday notava que “a multidão” dos seus usuários, insolitamente para os sítios de redes sociais, “incluía muitos tipos famosos” e sugeria que isso ocorria porque “de que outro modo você poderia pedir a Stephen Fry para ser seu amigo?”. Stephen Fry, uma celebridade respeitada por qualquer um que queira ser respeitado no mundo dos entendedores das últimas modas culturais, sentiu a necessidade de explicar e justificar aos leitores do Guardian por que é aceitável para uma pessoa como ele, aclamada como modelo das mais refinadas e sublimes credenciais culturais, vestir, uma vez por semana, as roupas de “fã”, dedicando a sua coluna [texto disponível aqui, em inglês] ao último brinquedo eletrônico: dispositivo que é considerado como parte da cultura “popular” (no passado, os tempos felizmente desconhecedores do “politicamente correto”, conhecido como “cultura de massa”) ao invés da superiora/detratora alta ou intelectual (as denominações “alto” e “intelectual” não são mais utilizadas no atual jargão do politicamente correto, exceto como insulto, com escárnio e entre aspas). Fry começa a sua declaração com uma confissão: “Os dispositivos digitais agitam o meu mundo. Isso poderia ser visto por alguns como um trágico consentimento. Não o ballet, a ópera, o mundo natural, Stephen? Não a literatura, o teatro ou a política mundial?”. E se apressa a prevenir as potenciais acusações: “Bem, as pessoas podem ficar loucas por todas as coisas digitais e ainda assim ler livros, podem ir à opera e olhar uma partida de cricket e comprar os ingressos do Led Zeppelin sem se quebrar em pedaços. (...) Você gosta de comida tailandesa? Mas o que há de errado com a italiana? Ei, calma lá. Eu gosto das duas. Sim, pode acontecer. Eu posso gostar de rugby e dos musicais de Stephen Sondheim. O alto gótico vitoriano e as instalações de Damien Hirst. Herb Alpert e Tijuana Brass e as peças de piano de Hindemith. Os hinos ingleses e Richard Dawkins. As primeiras edições de Norman Douglas e iPods. Bilhar, dardos e ballet. (...) Um amor pelos eletrônicos não me faz avesso ao papel, ao couro ou à madeira, a Natais à moda antiga, filmes de Preston Sturges e trilhas na mata”. Alguns limites ainda são respeitados, e ultrapassá-los é coisa de incautos. No geral, porém, essa confissão e declaração públicas suplica ser lida como um decidido desafio ao conceito de Pierre Bourdineau de “distinção”, como principal aposta na batalha das artes, conceito que governou e otimizou a nossa concepção das artes e, mais geralmente, da “cultura” durante as últimas três décadas. Stephen Fry tem a reputação de ser um trend-setter [definidor de tendências], mas é também o porta-voz mais confiável (e a personificação viva) das modas. Pode-se confiar nele pelo fato de que ele fala não só em seu nome, mas também em nome das centenas de milhares de militantes e dos milhões de membros aspirantes da “elite cultural” – pessoas que conhecem a diferença entre "comme il faut" e "comme il ne faut pas", e que são as primeiras a notar o momento em que essa diferença se torna diferente do que era um momento antes. E ele não errou nem desta vez. Segundo um estudo escrito por Andy McSmith e publicado na edição online do Independent, notáveis acadêmicos reunidos na mais notável universidade – Oxford – proclamaram que “a elite cultural não existe”. A esse ponto, McSmith, procurando um título adequadamente pungente e estimulante, não encontrou, porém, uma adaptação: o que John Goldthorpe, um dos mais respeitados pesquisadores das Ciências Sociais de Oxford, e a sua equipe de 13 pesquisadores deduziram dos dados colhidos no Reino Unido, no Chile, na Hungria, em Israel, nos Países Baixos e nos Estados Unidos, é que não se pode mais encontrar pessoas superiores que se distingam das outras, inferiores àquelas, indo à ópera e admirando qualquer coisa que tenha sido atualmente marcada como “alta arte”, enquanto torcemos o nariz com “qualquer coisa vulgar como as músicas pop ou a televisão aberta”. O leopardo da elite cultura está muito vivo e com garras bem afiadas, apenas mudou as suas colorações, que podem ser chamadas – desde quando Richard A. Petersen da Vanderbilt University cunhou, em 1992, a palavra “onivoracidade” – óperas e músicas pop, “altas artes” e televisão aberta; um pedaço daqui, um pedaço de lá, ora isto, ora aquilo, como Petersen recentemente se expressou: “Assistimos a uma mudança na política da classe elitista, dos intelectuais que desdenham esnobemente toda a cultura popular baixa, plebéia ou de massa, aos intelectuais que consomem, de modo onívoro, uma vasta gama de formas de arte popular, além das intelectuais”. (...) A cultura líquido-moderna não tem “pessoas” para “cultivar”, mas sim clientes para seduzir. E, diferentemente do seu predecessor “sólido-moderno”, não deseja mais fazer isso, no fim mas o antes possível, para terminar o trabalho. O seu trabalho consiste em tornar a própria sobrevivência permanente, tornando temporais todos os aspectos da vida dos seus velhos alunos, agora renascidos como clientes. Fonte: Instituto Humanitas, Unisinos. |
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"A finalidade da educação...é contestar o impacto das experiências do dia-a-dia, enfrentá-las e por fim desafiar as pressões que surgem do ambiente social.Mas será que a educação e os educadores estão à altura da tarefa? Serão eles capazes de resistir à pressão? Conseguirão evitar ser arregimentados pelas mesmas pressões que deveriam confrontar?"
Zygmunt Bauman, 2007
domingo, 7 de novembro de 2010
A elite na sociedade líquido-moderna. Artigo de Zygmunt Bauman
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