No dia primeiro de Maio de 2012, o Prof. João Manfio, sociólogo brasileiro radicado em Santa Catarina, realizou uma excelente entrevista com Bauman. Neste curto encontro, foi possível extrair do sociólogo polonês reflexões muito interessantes acerca dos problemas da escola contemporânea. Além disso, Bauman faz referências ao pensamento de Foucault e Bourdieu. Vale a pensa assistir. Abaixo, a matéria na íntegra, publicada em portal do sul do país, sobre a visita do sociólogo brasileiro a Leeds.
LITERATURA
No dia em que encontrei Zygmunt Bauman
Sociólogo
saiu de Joinville para ir a Leeds, na Inglaterra, para conhecer o maior
sociólogo vivo da atualidade. Entre situações inesperadas, ele
encontrou também um grande ser humano
Dia
frio e chuvoso como de costume em Leeds, na Inglaterra. Dia primeiro de
maio, logo pela manhã, chego de trem à estação central. Acompanhavam-me
pai e irmã. Lugar desconhecido, decidimos buscar taxi para chegar à
casa do grande mestre. Leeds, com aproximados 800 mil habitantes, está
entre as quatro maiores cidades da Inglaterra e foi o local escolhido
pelo sociólogo Zygmunt Bauman para recomeçar a carreira acadêmica na
década de 70 após ter obras censuradas na Polônia, sua terra natal.
Durante 20 minutos, no tempo entre a estação e a casa sinto a ansiedade
apertar. Pouco a pouco, o caminho conhecido das visitas em mapas da
internet indica proximidade e a expectativa aumenta. Chego à frente da
casa, portão aberto como quem espera por alguém. Ficha caindo, espera
por mim! Mas, eis que ocorre o inesperado que transforma as vidas e
desencadeia momentos que ficarão guardados na minha alma e no meu
coração para sempre.
Ao fechar a porta do taxi, minha irmã quase
perde o dedo esmagado. Momento de desespero e dor, planos afundando,
expectativas indo embora, desastre tomando conta. Ela se contorcendo me
diz: “Fica e realiza teu sonho, depois a gente se encontra”. E sem tempo
para pensar no que fora dito, ela e meu pai embarcam no mesmo taxi que
nos trouxera e se vão. Para onde? Como nos encontraremos de novo? Não
tinha a mínima ideia. Por alguns segundos fico a pensar no que ocorreu,
mas, o portão aberto me convida a entrar para realizar sonho antigo
amadurecido desde a época da graduação. Imagino que, com uma cara
apavorada, em decorrência do episódio, encontro o velhinho de 87 anos
que só me era conhecido fisicamente pelas entrevistas televisivas ou
pelas orelhas dos seus livros que levam sua foto com o inseparável
cachimbo. Abre a porta com postura amável e receptiva. Estou em frente a
um dos maiores, mais conhecidos e importantes sociólogos do mundo.
De
cara, pede meu casaco e conto a ele o que ocorrera um minuto antes em
frente a sua casa. Inevitável não fazê-lo. Me responde: “Que falta de
sorte”, e se mostra preocupado com minha irmã. Me conta que preciso
falar um pouco mais alto, pois, pela mesma falta de sorte, seu aparelho
auditivo quebrara nessa mesma manhã. Convida-me a entrar numa sala que
mais tarde fui perceber ser o local do contato dele com o mundo. Dali
escreveu grande parte dos mais de 70 livros já publicados em diversos
países. Me pergunta se quero chá ou café e, sob a mesa de centro, coloca
um cesto com pães doces e croissants de chocolate. Agradecido, escolho
café, e ele insiste que coma um pãozinho.
Lanço a ele questões
referentes à sociologia da educação, especificamente sobre os autores
Gramsci, no que diz respeito ao conceito de hegemonia e Bourdieu e seu
conceito de reprodução. Minha ideia inicial era traçar relações entre a
modernidade líquida e seus reflexos utilizando desses conceitos e
autores para fazer crítica ao modelo educacional atual. Estudar também
as características culturais da educação no Brasil utilizando as
práticas cotidianas como fonte de análise de nossa pratica pedagógica.
Com toda paciência de um mestre que deseja ensinar, mas sem antes me
perguntar se me importo com a fumaça, acende seu cachimbo e começa a
falar. Quanta coisa passa pela minha cabeça naquele momento. Sua voz, a
sala repleta de livros e a fumaça me trazem um sentimento de privilégio e
admiração antes mesmo que consiga prestar atenção em tudo o que diz. A
análise da sociedade que chama de líquida, o problema do consumo
desenfreado, o descontrole do capitalismo, a educação no novo contexto
da informação e a falta de humanidade no trato social são tópicos que
permeiam a conversa.
Por aproximadamente uma hora permanecemos
ali, eu mais ouvindo do que falando, aprendendo e contemplando. Quando
decido pegar um croissant, dá risada e diz: “Finaly”. Na minha cabeça,
apesar de toda sensação de privilégio e de sonho realizado, também não
cessa a cena do esmagamento do dedo. Cena que me acompanha até hoje e me
faz frisar a testa com angústia quando vem à cabeça. Ele percebe minha
preocupação e pergunta o que quero fazer a respeito. Sem saber a real
situação de minha irmã, sem saber o que fazer, decido pedir pra ficar
mais um pouco se não for incômodo, e ele prontamente responde que sim.
Aquela altura, sem telefone celular ou qualquer referência de para onde
poderiam ter ido decidi esperar.
Durante o tempo que ali estou,
ele pede licença para trabalhar em sua mais nova obra, e então tenho
outra oportunidade, única, de vê-lo produzir in loco. Antes de voltar ao
seu novo livro, entra em página de compras pela internet e, após uma
busca cuidadosa, confirma a compra de um novo aparelho auditivo. Fornece
o número de seu cartão e, perspicaz, confere na sua caixa de emails se a
compra fora confirmada. Após a certificação inicia o trabalho. Não quer
perder um minuto sequer de seu tempo de produção e contribuição para
sociedade.
Entre um parágrafo e outro, cachimbo na boca, digita
no teclado e, vez em quando, olha pro nada em direção a seu jardim que
faz frente para rua, pensando na próxima ideia. Aproximadamente uma hora
depois, percebemos que, pra encontrar minha irmã, teríamos que procurar
nos hospitais e que a espera não vingaria. Presume que existem duas
possibilidades. Então, por telefone, inicia pesquisa nos hospitais a
respeito da brasileira que esmagou o dedo. Na segunda ligação, a
localizamos e combino com ela o que fazer para nos reencontrarmos. Ele
chama uma táxi e, na hora da despedida, me abraça à moda brasileira e me
diz para me cuidar e que está torcendo pela minha irmã.
Esse
encontro foi muito esperado e programado por meses. Mas o detalhe
trágico me revelou o autor para além de seus livros. Revelou quem eu não
esperava, por ingenuidade ou por desconhecimento, o lado humano que só
conhecia dos livros. A preocupação com o outro que até então só
enxerguei na crítica ao modelo social individualista e desigual agora se
manifestara em relação a mim. A gentileza e o acolhimento típicos de
avô ou de pai mostram a pessoa por detrás das obras e confirma tudo que
havia imaginado sem saber se era realmente possível. Definitivamente eu
não estava na academia, mesmo em se tratando de conversa em tom
acadêmico. Na verdade, eu passei bem longe dela. E, embora todas suas
obras possam fazer parte do rol de obras estudadas no bojo acadêmico,
percebi que elas, como deveriam ser todas, dizem sobre a vida pela
prática e pelo exemplo.
Sua despreocupação em guardar filiação a
escola teórica naquilo que escreve ou fala, algo que já admirava nele há
mais tempo, mostra que se faz da vida o que ela deixa fazer ou o que a
situação exige que se faça. Aprendi que a ideia de humanização e
respeito, consideração e doação ao outro são as lições mais belas da
vida e podem também fazer parte da academia por vezes fria e insensível.
Não lhe falta respeito às escolas teóricas, lhe sobra humildade e
autonomia para decidir por onde seguir e experiência pra não se
envergonhar das escolhas. Exemplificou ali, na prática, o amor ao
próximo e ganhou um fã incondicional ainda mais apaixonado do que antes.
Sem
dúvida, foi a maior das aulas que já assisti. Na sua aparente solidão
no sobrado grande e antigo num bairro bonito de Leeds, cercado de livros
por todos os lados e à frente do computador, esse velhinho de 87 anos,
totalmente conectado ao mundo atual virtual e real, mostra fôlego
invejável para produzir mais e continuar a interpretar e contribuir para
sociedade atual frente aos enormes desafios que se mostram. Faz jus às
prateleiras das livrarias repletas de belas obras quando se fala em
sociologia e merece todo respeito acadêmico e reconhecimento pelos anos
de contribuição e análise do mundo. Compartilho com você, leitor, uma
das mais marcantes experiências de minha vida acadêmica e pessoal, como
forma de incentivar sua busca pela realização de sonhos e a contribuição
necessária para um mundo melhor por meio do exemplo prático.
A
propósito, minha irmã passa bem, após cirurgia no dedo indicador
realizada lá mesmo em Leeds. Cicatriz maior nas nossas vidas será a
grande lição de que nem sempre os planos se realizam como imaginamos – o
que não significa dizer que deixam de ser grandes realizações.Nesse
caso o inesperado, apesar de suas consequências, mostrou que as energias
positivas são mais fortes que quaisquer outras. Obrigado aos meus
queridos alunos e amigos que tanto torceram pelo sucesso na empreitada. À
minha irmã e meu pai agradeço pelo amor incondicional que é recíproco
não importa como, onde, quando e por que. Compartilho com vocês a
alegria da realização e o retorno feliz. Hum, mais uma coisa: o
croissant estava fantástico!
*João Nicodemos Martins Manfio é
sociólogo, professor universitário em Joinville, mestre em sociologia
política (UFSC) e doutorando em ciências sociais (PUC-SP). É membro da
Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Email: jnmanfio@hotmail.com.
JOÃO NICODEMOS MARTINS MANFIO*
Fonte: http://www.clicrbs.com.br