"A finalidade da educação...é contestar o impacto das experiências do dia-a-dia, enfrentá-las e por fim desafiar as pressões que surgem do ambiente social.Mas será que a educação e os educadores estão à altura da tarefa? Serão eles capazes de resistir à pressão? Conseguirão evitar ser arregimentados pelas mesmas pressões que deveriam confrontar?"

Zygmunt Bauman, 2007


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

VÍDEO: Zygmunt Bauman fala sobre a escola contemporânea a sociólogo brasileiro.




No dia primeiro de Maio de 2012, o Prof. João Manfio, sociólogo brasileiro radicado em Santa Catarina, realizou uma excelente entrevista com Bauman. Neste curto encontro, foi possível extrair do sociólogo polonês reflexões muito interessantes acerca dos problemas da escola contemporânea. Além disso, Bauman faz referências ao pensamento de Foucault e Bourdieu. Vale a pensa assistir. Abaixo, a matéria na íntegra, publicada em portal do sul do país, sobre a visita do sociólogo brasileiro a Leeds.

LITERATURA

No dia em que encontrei Zygmunt Bauman

Sociólogo saiu de Joinville para ir a Leeds, na Inglaterra, para conhecer o maior sociólogo vivo da atualidade. Entre situações inesperadas, ele encontrou também um grande ser humano

Dia frio e chuvoso como de costume em Leeds, na Inglaterra. Dia primeiro de maio, logo pela manhã, chego de trem à estação central. Acompanhavam-me pai e irmã. Lugar desconhecido, decidimos buscar taxi para chegar à casa do grande mestre. Leeds, com aproximados 800 mil habitantes, está entre as quatro maiores cidades da Inglaterra e foi o local escolhido pelo sociólogo Zygmunt Bauman para recomeçar a carreira acadêmica na década de 70 após ter obras censuradas na Polônia, sua terra natal. Durante 20 minutos, no tempo entre a estação e a casa sinto a ansiedade apertar. Pouco a pouco, o caminho conhecido das visitas em mapas da internet indica proximidade e a expectativa aumenta. Chego à frente da casa, portão aberto como quem espera por alguém. Ficha caindo, espera por mim! Mas, eis que ocorre o inesperado que transforma as vidas e desencadeia momentos que ficarão guardados na minha alma e no meu coração para sempre.

Ao fechar a porta do taxi, minha irmã quase perde o dedo esmagado. Momento de desespero e dor, planos afundando, expectativas indo embora, desastre tomando conta. Ela se contorcendo me diz: “Fica e realiza teu sonho, depois a gente se encontra”. E sem tempo para pensar no que fora dito, ela e meu pai embarcam no mesmo taxi que nos trouxera e se vão. Para onde? Como nos encontraremos de novo? Não tinha a mínima ideia. Por alguns segundos fico a pensar no que ocorreu, mas, o portão aberto me convida a entrar para realizar sonho antigo amadurecido desde a época da graduação. Imagino que, com uma cara apavorada, em decorrência do episódio, encontro o velhinho de 87 anos que só me era conhecido fisicamente pelas entrevistas televisivas ou pelas orelhas dos seus livros que levam sua foto com o inseparável cachimbo. Abre a porta com postura amável e receptiva. Estou em frente a um dos maiores, mais conhecidos e importantes sociólogos do mundo.


De cara, pede meu casaco e conto a ele o que ocorrera um minuto antes em frente a sua casa. Inevitável não fazê-lo. Me responde: “Que falta de sorte”, e se mostra preocupado com minha irmã. Me conta que preciso falar um pouco mais alto, pois, pela mesma falta de sorte, seu aparelho auditivo quebrara nessa mesma manhã. Convida-me a entrar numa sala que mais tarde fui perceber ser o local do contato dele com o mundo. Dali escreveu grande parte dos mais de 70 livros já publicados em diversos países. Me pergunta se quero chá ou café e, sob a mesa de centro, coloca um cesto com pães doces e croissants de chocolate. Agradecido, escolho café, e ele insiste que coma um pãozinho.

Lanço a ele questões referentes à sociologia da educação, especificamente sobre os autores Gramsci, no que diz respeito ao conceito de hegemonia e Bourdieu e seu conceito de reprodução. Minha ideia inicial era traçar relações entre a modernidade líquida e seus reflexos utilizando desses conceitos e autores para fazer crítica ao modelo educacional atual. Estudar também as características culturais da educação no Brasil utilizando as práticas cotidianas como fonte de análise de nossa pratica pedagógica. Com toda paciência de um mestre que deseja ensinar, mas sem antes me perguntar se me importo com a fumaça, acende seu cachimbo e começa a falar. Quanta coisa passa pela minha cabeça naquele momento. Sua voz, a sala repleta de livros e a fumaça me trazem um sentimento de privilégio e admiração antes mesmo que consiga prestar atenção em tudo o que diz. A análise da sociedade que chama de líquida, o problema do consumo desenfreado, o descontrole do capitalismo, a educação no novo contexto da informação e a falta de humanidade no trato social são tópicos que permeiam a conversa.

Por aproximadamente uma hora permanecemos ali, eu mais ouvindo do que falando, aprendendo e contemplando. Quando decido pegar um croissant, dá risada e diz: “Finaly”. Na minha cabeça, apesar de toda sensação de privilégio e de sonho realizado, também não cessa a cena do esmagamento do dedo. Cena que me acompanha até hoje e me faz frisar a testa com angústia quando vem à cabeça. Ele percebe minha preocupação e pergunta o que quero fazer a respeito. Sem saber a real situação de minha irmã, sem saber o que fazer, decido pedir pra ficar mais um pouco se não for incômodo, e ele prontamente responde que sim. Aquela altura, sem telefone celular ou qualquer referência de para onde poderiam ter ido decidi esperar.

Durante o tempo que ali estou, ele pede licença para trabalhar em sua mais nova obra, e então tenho outra oportunidade, única, de vê-lo produzir in loco. Antes de voltar ao seu novo livro, entra em página de compras pela internet e, após uma busca cuidadosa, confirma a compra de um novo aparelho auditivo. Fornece o número de seu cartão e, perspicaz, confere na sua caixa de emails se a compra fora confirmada. Após a certificação inicia o trabalho. Não quer perder um minuto sequer de seu tempo de produção e contribuição para sociedade.

Entre um parágrafo e outro, cachimbo na boca, digita no teclado e, vez em quando, olha pro nada em direção a seu jardim que faz frente para rua, pensando na próxima ideia. Aproximadamente uma hora depois, percebemos que, pra encontrar minha irmã, teríamos que procurar nos hospitais e que a espera não vingaria. Presume que existem duas possibilidades. Então, por telefone, inicia pesquisa nos hospitais a respeito da brasileira que esmagou o dedo. Na segunda ligação, a localizamos e combino com ela o que fazer para nos reencontrarmos. Ele chama uma táxi e, na hora da despedida, me abraça à moda brasileira e me diz para me cuidar e que está torcendo pela minha irmã.

Esse encontro foi muito esperado e programado por meses. Mas o detalhe trágico me revelou o autor para além de seus livros. Revelou quem eu não esperava, por ingenuidade ou por desconhecimento, o lado humano que só conhecia dos livros. A preocupação com o outro que até então só enxerguei na crítica ao modelo social individualista e desigual agora se manifestara em relação a mim. A gentileza e o acolhimento típicos de avô ou de pai mostram a pessoa por detrás das obras e confirma tudo que havia imaginado sem saber se era realmente possível. Definitivamente eu não estava na academia, mesmo em se tratando de conversa em tom acadêmico. Na verdade, eu passei bem longe dela. E, embora todas suas obras possam fazer parte do rol de obras estudadas no bojo acadêmico, percebi que elas, como deveriam ser todas, dizem sobre a vida pela prática e pelo exemplo.

Sua despreocupação em guardar filiação a escola teórica naquilo que escreve ou fala, algo que já admirava nele há mais tempo, mostra que se faz da vida o que ela deixa fazer ou o que a situação exige que se faça. Aprendi que a ideia de humanização e respeito, consideração e doação ao outro são as lições mais belas da vida e podem também fazer parte da academia por vezes fria e insensível. Não lhe falta respeito às escolas teóricas, lhe sobra humildade e autonomia para decidir por onde seguir e experiência pra não se envergonhar das escolhas. Exemplificou ali, na prática, o amor ao próximo e ganhou um fã incondicional ainda mais apaixonado do que antes.

Sem dúvida, foi a maior das aulas que já assisti. Na sua aparente solidão no sobrado grande e antigo num bairro bonito de Leeds, cercado de livros por todos os lados e à frente do computador, esse velhinho de 87 anos, totalmente conectado ao mundo atual virtual e real, mostra fôlego invejável para produzir mais e continuar a interpretar e contribuir para sociedade atual frente aos enormes desafios que se mostram. Faz jus às prateleiras das livrarias repletas de belas obras quando se fala em sociologia e merece todo respeito acadêmico e reconhecimento pelos anos de contribuição e análise do mundo. Compartilho com você, leitor, uma das mais marcantes experiências de minha vida acadêmica e pessoal, como forma de incentivar sua busca pela realização de sonhos e a contribuição necessária para um mundo melhor por meio do exemplo prático.

A propósito, minha irmã passa bem, após cirurgia no dedo indicador realizada lá mesmo em Leeds. Cicatriz maior nas nossas vidas será a grande lição de que nem sempre os planos se realizam como imaginamos – o que não significa dizer que deixam de ser grandes realizações.Nesse caso o inesperado, apesar de suas consequências, mostrou que as energias positivas são mais fortes que quaisquer outras. Obrigado aos meus queridos alunos e amigos que tanto torceram pelo sucesso na empreitada. À minha irmã e meu pai agradeço pelo amor incondicional que é recíproco não importa como, onde, quando e por que. Compartilho com vocês a alegria da realização e o retorno feliz. Hum, mais uma coisa: o croissant estava fantástico!

*João Nicodemos Martins Manfio é sociólogo, professor universitário em Joinville, mestre em sociologia política (UFSC) e doutorando em ciências sociais (PUC-SP). É membro da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Email: jnmanfio@hotmail.com.
JOÃO NICODEMOS MARTINS MANFIO*
 Fonte: http://www.clicrbs.com.br